O norte-americano Philip K. Dick (1928-1982) é responsável por algumas das minhas ressacas literárias mais épicas. Desde meu primeiro contato com o trabalho do autor, por meio dos contos de Sonhos elétricos, foi uma cacetada atrás da outra, com destaque para Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968). Seu universo literário doentio, embebido em paranoia e de uma tristeza absoluta, me deixou de queixo caído — como em um desenho animado, com os olhos saltados para fora e pelos eriçados, em um êxtase quase religioso. Minha experiência mais recente, com o romance Fluam, minhas lágrimas, disse o policial (1974), não foi diferente.
Antes de começar minhas próprias anotações, gosto de lembrar o porquê me vi envolvido com esse autor: a quarta capa de Sonhos elétricos traz uma frase do chileno Roberto Bolaño (1953-2003) que diz: “Dick era uma espécie de Kafka embebido em LSD e raiva”. Esse tipo de anotação despojada sobre literatura, sem qualquer tipo de ranço acadêmico, costuma me tocar muito — e, me parece, diz mais sobre a “pegada” do escritor do que qualquer análise mais técnica e dita científica sobre seu trabalho. Como gosto muito de Bolaño, comprei o peixe sem pensar duas vezes.
Na falta desse poder de síntese visceral, resta-me refletir sobre minha leitura mais recente sendo mais verborrágico e, por consequência, chato. Com alguma sorte, e torcendo para que energias dickianas fluam por meio de minhas palavras, serei capaz de apresentar um vislumbre de como funciona o universo ficcional do autor ao revisitar elementos da história que começa em uma terça-feira, 11 de outubro de 1988, quando o Programa Jason Taverner teve trinta segundos a menos de duração.
Bem-vindo à paranoia
Em Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, Jason Taverner é aquela típica estrela de TV babaca. O homem, que tem todas as qualidades caricatas de quem tem um programa de sucesso há duas décadas (bonito, voz boa, carismático, magnético), está prestes a tomar um baita tombo, lá do alto de seu próprio ego, para despencar em uma espécie de multiverso pedagógico — em uma manobra que K. Dick usa com frequência em seus escritos, a de pegar um exemplo cotidiano que esteja enraizado no imaginário popular e transformá-lo em uma história de terror psicológico.
Neste caso, o intocável do entretenimento vai descobrir que talvez ele não tenha tanto controle sobre a existência quanto acha que tem. Que talvez o fato de ele ser um Seis, espécie de humano modificado geneticamente, não irá salvá-lo dos horrores de acordar certo dia sem ser reconhecido por ninguém. E não só por ninguém que costumava assisti-lo na TV, mas por ninguém mesmo: não há registros de sua existência em nenhum meio legal, e isso considerando que a narrativa se passa em uma realidade dominada por um forte estado policial.
A partir desse choque inicial, que apresenta um protagonista tentando recuperar sua identidade no mundo, a história se encaminha para o desenvolvimento de suas discussões mais profundas, conduzidas por personagens como Kathy (responsável por falsificar a documentação do inexistente Taverner), Ruth Rae (figura decadente que entrega, na parte 11, algumas das melhores reflexões existencialistas do livro), Buckman (um servidor do estado que parece durão à primeira vista, mas é o pilar para se debater o abuso policial e, no final da obra, passa por uma baita expiação), Alys (doidona da história, em todos os sentidos, casada com Buckman e contraponto do totalitarismo) e Mary Anne Dominic (uma ceramista que incorpora o lado mais “humano” da trama, o de uma artista independente que pode parecer frágil a princípio mas é, em sua essência, a mais resiliente — por estar em um caminho que nada tem com aparências, mídia ou truculência).
Normalização do caos
Acho que dá para perceber, pelas qualidades dos personagens elencados acima, que o livro é construído por meio de camadas reflexivas, no que uma conduz — e se contrapõe — à outra. Há o apelo midiático versus o caminho do artista independente; o policial truculento, muito bom no que faz, que se vê em uma crise existencial; a doidona do bairro, outsider, que guarda segredos com os quais os “normais” nem sonham em ter acesso; e, no caso específico de Ruth Rae, uma figura decadente que, justamente por ter entendido a decadência inerente ao caminho daqueles que desejam tão somente a glória vazia, acaba por desenvolver as melhores sacadas sobre a vida. Ela explica ao protagonista, na parte 11:
Jason, o sofrimento é a consciência de que você vai ter que ficar sozinho, e não existe nada além disso, porque estar sozinho é o destino máximo e final de toda criatura viva. A morte é isso, a grande solidão.
Percebe que não há nenhum obscurantismo na forma de se expressar? A maneira cristalina com que mensagens aterrorizantes desse tipo são passadas é uma das qualidades mais marcante do autor. Outro trecho doído, mas simples (simples na maneira que é descrito, não que seja de fácil absorção), é quando se explica como os negros, na realidade do livro, foram submetidos ao processo de esterilização — e é assim que K. Dick faz o retrato de uma sociedade racista.
Sempre que penso nisso, em de onde vem essa força da prosa simples do K. Dick, lembro da batalha de David Foster Wallace (1962-2008), descrita no ensaio E Unibus Pluram, contra o recurso vazio da ironia. O que quero dizer é que, em passagens como aquelas, Dick consegue expressar com uma honestidade que transborda da página o desalento de ser humano, sem precisar recorrer a manobras que soem inteligentonas, herméticas.
Essa linguagem direta perpassa o livro inteiro. Tudo que acontece, por mais surreal que seja, é descrito com uma clareza que naturaliza o surreal, em uma espécie de normalização do absurdo. Como se o autor não temesse esse caos todo, mas, pelo contrário, tivesse realmente apreendido essa condição — a da existência com todas suas nuances bizarras, jogos de poder, frequências mentais inacessíveis, traumas e angústias, um monte de encheção de saco por todos os lados e em todas as camadas sociais. E como se, enfim, ao entender essa condição, ele tentasse utilizá-la para criar fortes exercícios reflexivos, diluídos em uma história que pode parecer inocente. Não se engane.