Estar perto não é físico

Ismael Caneppele constrói, em "Os famosos e os duendes da morte", uma narrativa de rara intensidade e exuberância estética
Ismael Caneppele, autor de “Os famosos e os duendes da morte”
01/10/2012

Tradução: José Carlos Zamora

Vim para Las Grutas descansar. Na minha idade, novos ares sempre dão a impressão de que a vida não é tão ruim. Noe enviou-me pelo correio um livro de título curioso chamado Os famosos e os duendes da morte, de um certo Ismael Caneppele. Dona Eneida, que me acompanha, auxiliando-me em minhas fraquezas de velho, leu-me as 94 páginas durante a nossa semana de longos dias e noites curtas. À luz do sol, fiz caminhadas, entrei no mar descendo as árduas bajadas, tão tranqüilo como se tivesse 12 anos, e me deixei simplesmente viver, pensando, como os brasileiros que encontrei pelas areias douradas, “isso é que é vida”. Se somos descendentes de macacos ou pássaros como rezam as teorias evolucionistas, certo é que nosso devir é réptil, as temperaturas aumentam e nossa fina pele dará lugar a uma casca de lagarto. Morrerei antes, para minha sorte. Já à luz da lâmpada, ouvia a interpretação de dona Eneida sobre o agradabilíssimo livro. Na paz dos ares que sopram da Patagônia, não voltaria a Las Heras não fosse pelos meus porcos.

Em Las Heras nem tudo é paz. Noe teve um ataque de ciúmes, mandou-me uma carta desaforada, chorando a fantasiosa dor de corno. Dona Eneida, que é praticamente uma beata, ligou para destratá-lo, mas não me contou o desfecho do episódio. Sugeri que afirmasse sua condição de trabalhadora que, afinal, me presta respeitosos serviços de governanta, mas creio que ela prefere mortificá-lo de algum outro modo. Creio que sua beatice seja perversão e que não sei da missa a metade no que concerne a estes dois.

Luizita veio conosco, mas em dois dias cansou-se da pasmaceira do pequeno hotel, arranjou uma turma e seguiu em frente. Não entendi se ia escalar na Patagônia ou surfar em Necochea. Para mim, esportes radicais são todos a mesma coisa. Muito mais radical é enfrentar a pocilga e, quando penso nela, sinto que é preciso voltar. Sairemos daqui amanhã mesmo. A viagem de ônibus não é fácil, mas não entro em aviões desde 1970, quando fui a Nova York a contragosto. Minha ida a Portugal, onde lecionei por anos, foi de navio. Um dia conto esta outra história. Às vezes penso que se eu conseguisse me desprender de mim e inventar um narrador, teria grandes feitos literários, pois que passei por muitas histórias impressionantes. Deixo esta e outras para depois, pois que, neste momento, descobri que Rogério Pereira cortou-me três mil caracteres de espaço e preciso ser econômico.

Antes de Luizita seguir adiante, comentei com ela sobre o livro recém-chegado. Para minha surpresa, ela não apenas o tinha lido, como vira o filme que leva o mesmo nome. Em minutos chamou-me ao seu computador, onde pude ver a película com o próprio Ismael Caneppele como ator. Espantei-me. Um dos personagens do livro chama-se Julián como eu. Era justamente esta a figura interpretada por Caneppele. Simpatizei de imediato por um desses acasos da vida. Vi-me jovem, livre, solto, com os impressionantes cabelos encaracolados, dirigindo um fusca, como se fosse com Luizita para uma aventura tribal.

Mas não é por isso que vou falar bem dele, que não me deixo capturar por empatias. Falarei bem porque o livro é um primor. De volta a um mundo que não conheci a cada frase bem desenhada, passei a crer novamente na literatura. Luizita disse-me que o livro fora primeiramente publicado em blog. Sei que é assim que os jovens escrevem hoje e essa exuberância me comove. A coragem é qualidade dos jovens que não temem o que há de vir. Eu, que me sinto cada vez mais próximo da magra, percebo que, na verdade, ainda sou muito jovem, pois que também eu não temo o que há de vir. Sobretudo porque alguns livros ainda me alegram, porque posso vir à praia de vez em quando e, principalmente, porque tenho a transcendência diária da pocilga. Nenhum livro, é verdade, compete com os prazeres da pocilga, e não devemos compará-los, pois seria covardia.

Caneppele escreveu um livro de intensidade rara. Um livro sem a vergonha, a timidez ou o medo que muitas vezes se vê no trabalho da escrita por aí. No entanto, um livro em que comparecem a vergonha, a timidez e o medo que sentem as pessoas jovens, as quais os adultos chamam de adolescentes. Caneppele não cai na armadilha de tratar seus personagens segundo o olhar que adultos lançam sobre jovens, aprisionando-os no limbo da idade enquanto se afastam da beleza da experiência de quem não tem verdades da vida para vender barato. O olhar adulto, o das verdades baratas, sempre é mau, como tudo o que é ressentido. Ele me cansa ainda mais agora que estou velho e, descubro, posso ser criança novamente. Para minha alegria, deixo dia a dia de ser adulto. O escritor Caneppele é mais do que um adulto que falaria sobre jovens ou os venderia como livros para entender uma idade. Sua literatura é um exercício de exuberância estética, ainda que seja inevitável ver neste seu livro a questão da experiência vivida da juventude. E por que não? Literatura com personagens infantis não é infantil, com jovens não é infanto-juvenil e com mulheres não é feminina. Temos que acabar com este tipo de platitude e encher de areia a boca dos teóricos que as vendem.

O frio é um afeto
Nosso narrador conta sobre dois jovens amigos. Um deles é simplesmente o amigo Diego. O outro nos guiará em sua travessia para a fuga, o aprisionamento insuportável da vida com a mãe na casa simples de uma cidade do interior que, de tão pacata, está como que morta. Nela, vivos são apenas aqueles que querem morrer.

A história começa logo depois da morte do pai. O personagem do garoto é tão vivo em seu conflito com o mundo e consigo mesmo que temos vontade de salvá-lo dali. Dizer-lhe que a fuga é um direito. Até mesmo a fuga de si. O pai não é uma falta, assim como a mãe não é exatamente uma realidade. Talvez sejam mais o que ele diz a propósito de uma explicação sobre as estrelas: “uma presença e uma falta acontecendo ao mesmo tempo”.

O inverno e o frio são, neste livro, mais que uma estação ou uma sensação física, são o afeto que tudo une. A cidade é fria e frias são as pessoas que usam uma ponte para matar-se. Quem se mata exerce o espantoso afeto do frio que tudo corta: assim o fio da vida.

“Estar perto não é físico” é uma frase que costura esse frio cortante contra o fio da vida. É uma das belas iluminações que o livro derrama sobre seus leitores como água cálida capaz de desfazer geada.

O frio tem lugar: é gaúcho. Não é o frio da Patagônia. Tampouco é o frio da geladeira ou das tecnologias que o banalizam. O frio é gaúcho e, mais ainda, da Serra, da região da colonização alemã e italiana. Quem o conhece, saberá o porquê do chimarrão que é bebido quente, diferente do nosso argentino, bebido frio. O nosso narrador bebe chocolate. Porque ele não tem o sentimento de pertença. Ele está fora. Ele sente diferente, percebe o que os outros não vêem. Ouviu Bob Dylan, quer ver um show do músico na cidade grande e fugir para sempre. Eu também um dia fugi, mas tive que voltar. Não fosse meu encantamento com a pocilga e esta vida estaria perdida para sempre.

Uma das mulheres que mais me fez sofrer na vida chamava-se Helga, como a dona do mercadinho no qual o nosso protagonista rouba chocolates. Helga era gaúcha. Conheci sua frieza nórdica compensada pela beleza que, no verão, mudava de cor como as areias de Las Grutas. Era um espetáculo à parte. Casou-se com um rico de Lageado, para onde voltou depois de concluída a faculdade de Letras. Somente agora, lendo Caneppele, lembro dela, pois seu sobrenome era Geheimnis, palavra alemã que significa “segredo”. Ela sinaliza no livro aquilo que é secreto: o roubo. Na narrativa, Geheimnis é o que, segundo a visão de mundo da avó do menino, suja o nome de qualquer um. O pequeno ladrão investiga sua culpa e mantém o seu segredo.

Também tenho meus segredos, que aos poucos vou contando nessas resenhas crono-críticas. Revelação: o livro de Caneppele devolveu-me um ar bom de nostalgia sem inocência. Descubro, lendo os jovens, que posso ser velho em paz.

Os famosos e os duendes da morte
Ismael Caneppele
Iluminuras
94 págs.
Ismael Caneppele
Foi assistente de direção em ópera e ator de teatro quando morou na Alemanha e na Croácia. É autor de Música para quando as luzes se apagam. Os famosos e os duendes da morte foi filmado pelo diretor Esmir Filho.
Julián Ana

É crítico literário. Nasceu em Hormiguero, Argentina, em 1941. Foi professor visitante em várias universidades dos países de língua portuguesa, inclusive na Universidade de Coimbra onde doutorou-se em Literatura Comparada com uma tese sobre “O Devir Histórico da Terminologia”. Colaborou com diversas revistas e jornais. Aposentado, passou a residir em Las Heras e a dedicar-se especialmente à literatura brasileira contemporânea e à suinocultura.

Rascunho