Esse corpo fede

Romance de Daniel Pennac torna-se superficial ao tratar as transformações do homem como meros mecanismos fisiológicos
Daniel Pennac, autor de “Diário de um corpo”
31/10/2017

Diário de um corpo, do francês Daniel Pennac, é desses romances que, a despeito de personagens marcantes, estilo profundo, premissa intrigante, redunda num livro absolutamente anódino, de fato insípido, tedioso como a vida que tenta mimetizar. Isso é talvez tudo o que se pode dizer sobre a obra; todo o resto será uma variação mais ou menos evidente dessa ideia principal. Comecemos, então, pelo que há de menos estafante no trabalho, seu ponto de partida. Um homem deixa à filha cadernos em que anotou as mudanças por que seu corpo passou ao longo do tempo. Ao receber a papelada do pai morto, a mulher encaminha o material ao amigo D. P., que o publica. Um manuscrito naturalmente — como expressava, irônico, Umberto Eco, no início de O nome da rosa, em relação a esse repisado recurso de atribuir ao acaso a descoberta de um misterioso texto cujo autor é figura desconhecida ou impossível.

Daí em diante segue-se o que se pode mesmo esperar de um corpo físico. Os cheiros, de peidos, arrotos, axilas, aparecem em pelo menos dez páginas; merda, em pelo menos sete — incluindo-se a diarreia; mijo em nove; dente em oito; dores em onze; também surgem feridas, escarradas, bocejos, vômito, pelos, espirros. O leitor é obrigado a se defrontar com isto: “Após uma evacuação irrepreensível, de uma peça só, perfeitamente lisa e moldada, densa, mas não pegajosa, com cheiro, mas não fedorenta, com um corte perfeito e um marrom homogêneo, produto de uma única empurrada e com uma passagem suave para fora, que ainda por cima não deixa nenhuma marca no papel, uma olhadinha de artesão satisfeito: meu corpo trabalhou muito bem”, registra-se no dia 12 de abril de 1961, na página 161. E também com isto: “a caça aos cravos. A pele do meu peito pinçada entre os dois polegares e o cravo sendo expulso lentamente pela junção das unhas. A cara que Mona faz nessa hora!”, que vai escrito na página 142.

Mas para aí a abundância de escatologias universais, porque se trata de um livro essencialmente sobre o corpo masculino. O aparelho reprodutor do homem, em ereção ou pleno fracasso sexual, em gozo ou polução noturna, pela próstata ou pelos testículos, é de alguma forma mencionado vinte e uma vezes ao menos. “Orgasmos do fundo do corpo, orgasmos da ponta do pau”, escreve na página 115. E observa-se na 82: “Esse desejo que às vezes toma conta de mim nas situações mais inesperadas. No embalo de algumas leituras, por exemplo. As inundações dos corpos cavernosos através do estímulo dos neurônios!”.

Essas prosaicas necessidades fisiológicas estão salpicadas ao longo de uma trajetória banal: o relacionamento difícil com a mãe, a perda prematura do pai e da mulher que o criou, a brochada na primeira vez, o pólipo no nariz, a paixão à primeira e única esposa, os esquecimentos, o zumbido no ouvido, os filhos, as festinhas de aniversário, a morte do neto gay, a doença que o vitimou. É um diário familiar que, contudo, não ignora em absoluto aqueles episódios em que a vida do indivíduo tromba com a história. Por isso estão lá a resistência à ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, a revolução dos costumes a partir do Maio de 68, o crescimento da xenofobia (resumido num incidente desagradável na padaria). Inicia em 1936, finda em 2010.

Comentários
O autor preenche os músculos e as cartilagens que põem de pé esse esqueleto branco, macilento como qualquer outro, com comentários reflexivos, genéricos, abrangentes. Alguns exemplos: “O envelhecimento não é outra coisa senão um fenômeno de oxidação generalizada. Enferrujamos”, afirma na página 142; “A personalidade política é priápica por natureza. É com essa energia que se conquista o poder; ou então exatamente com o seu contrário”, grafa na página 188; “Cada um de nós é, até o fim, filho do nosso próprio corpo. Um filho frustrado”, pontua na página 320. Nessas passagens tem o personagem, respectivamente, 33, 45 e 86 anos, mas nem todos os juízos dele vêm apenas com a maturidade. Aos 13 anos, na página 35, cita Sêneca por meio do pai, que lhe repetia a mesma frase do filósofo: “Todo homem acha que carrega o mais pesado dos fardos”; aos 14 anos, na página 51, percebe que o corpo e o espírito de um determinado conhecido cresceram juntos, de maneira que não “precisam conhecer de novo um ao outro a cada surpresa”.

Tal modo de narrar característico porque em certo sentido elegante, que está presente da primeira à última página, não se justifica pela eventual erudição do narrador, um palestrante que preferia assistir aos filmes de Ingmar Bergman, citava Michel de Montaigne com tranquilidade e fora criado sob as bênçãos de um pai breve mas circunstancialmente culto. Não se trata de uma mera questão de estilo; é problema fatal de construção, da constituição mesma do romance. Que vida é assim tão imutável, estática, pronta? Percebe-se que não existe ali um ser humano, variado, múltiplo, metamórfico ao correr dos anos, mas, em verdade, apenas um único escritor, num dado momento, que quis infundir a uma figura de ficção uns certos ares de realidade. Assim, o narrador não muda, não evolui; nasce e morre igual; não há aprendizado, nem reveses, nem triunfos.

Nesse sentido não é de estranhar-se que tudo seja apenas superfície. As muitas descrições dos mecanismos do corpo são corolário desse problema estrutural. A jornada do protagonista, que o leitor também está destinado a percorrer, não é pontuada com fezes, dores de dente, cheiro de esperma e tantas outras funções mecânicas, fisiológicas, físicas do corpo com o objetivo de avançar analiticamente sobre as implicações que possuir uma materialidade traz às criaturas, mas resume-se a servir de penduricalhos óbvios, e por que não desnecessários, para enfeitar ou rechear o livro — não sem uma dose de humor e dor.

O que estou querendo dizer é que reduzir, portanto, o corpo à sua mecânica apequena também o projeto do autor. Porque, muito além desse corpo interno, pautado meramente em trocas químicas no âmago das células, em gases e líquidos, há uma interseção entre ele e uma imaterialidade externa, uma subjetividade, constituída no social e no contato com o outro, que, de modo inevitável, conforma e configura o que entendemos ser esse mesmíssimo corpo material que possuímos. Cheia de absolutas possibilidades literárias e metafísicas, essa ideia é elevada à máxima potência do pensamento no excelente romance Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello. Vitangelo Moscarda entra em parafuso quando é informado pela esposa que tem o nariz torto. A viagem ao redor do próprio umbigo, ou melhor, do nariz dispensa o suor e o chulé, mas não deixa de ser também uma história sobre o aprendizado do corpo. O que afeta tanto Moscarda é o fato de desconhecer a si mesmo, ainda que tenha sido alvo de autoexame ao longo de toda uma vida. A ignorância, neste caso, é fecunda porque leva à dúvida e da dúvida a talvez algumas respostas. As que o italiano encontra são instigantes: os Vitangelos são tantos quantas sejam as relações que seu corpo cria com o mundo e com os outros. Mas quantos seria o herói de Pennac? É uma pergunta retórica, claro; a senha está curiosamente no título de Pirandello. Diminuído à meleca do nariz (“A ponta da unha explora a narina, descobre a meleca”, na página 145), este Diário só quebra sua espiral descendente quando das mortes — então, revela-se, no lamento sobre a tumba de pessoas amadas, um corpo com alguma capacidade imaginativa, poética, transcendente. Mas não morre tanta gente assim no livro.

Diário de um corpo
Daniel Pennac
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Rocco
335 págs.
Daniel Pennac
Nascido em 1944 no Marrocos, é autor premiado de romances, peças, roteiros de cinema e literatura infantil. Um de seus maiores sucessos é a saga da família Malaussène. Nos anos 1970, morou em Fortaleza e, a partir da experiência, produziu O ditador e a rede.
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

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