Esse bicho chamado Amor

Nem ligavam para o silêncio ensurdecedor que os cercava. Estavam absortos em seus pensamentos. Perdidos em devaneios, em frases e em músicas
01/06/2001

“Amar é mudar a alma de casa” (Mário Quintana)

Nem ligavam para o silêncio ensurdecedor que os cercava. Estavam absortos em seus pensamentos. Perdidos em devaneios, em frases e em músicas. Não precisavam falar nada. Nem olhar um para o outro. Mas de vez em quando olhavam-se, perdidos, olhos embotados, opacos. E sorriam. E desviavam os olhos. E voltavam a pensar. Em quê? Em nada. Em tudo. Amanhã tem trabalho, vou ao cinema depois, comer bala de goma, dar risada, escrever um conto, ler o livro que está na cabeceira da cama há dois meses intocado, “Não se afobe não/Que nada é pra já/O amor não tem pressa/ele pode esperar em silêncio/Num fundo de armário/Na posta-restante/Milênios, milênios/No ar”, música bonita essa do Chico, ele pensou. E disse para ela colocar um som. Ela ligou no rádio, mesmo. Ele observava seus movimentos. Lentos, pareciam um bailado. Ele adorava o balé dela. Poderia ser dançarina, não fosse tão desastrada. Tropeçava em tudo. Ele nem ligava. Nunca se irritava com o jeitinho dela. (Desde que se conheceram. No horário marcado eles se encontraram na porta do cinema. Ele comprou os ingressos. Ela, as balinhas de goma, doce vício. Na entrada da sala escura, ela tropeçou. E se agarrou no lanterninha, que caiu junto. Ele riu. No jantar, depois do filme, ela derrubou molho vermelho na blusa nova. Ele riu. Ria sempre.). Do rádio vinha Frank Sinatra e Tom Jobim. “Fly me to the moon, and let me play among those stars.” Ela cantarolou, mas seu inglês era péssimo. Ele riu. Ria sempre. Não conhecia a música mas achou engraçado o jeito dela, que era meio sem jeito. Ela lembrou de um curta-metragem que viu na tevê, em que um casal de zumbis dançava ao som desta canção, num cemitério. Riu. E dançou. Como se estivesse em um musical. E o puxou pelo braço. Ele é bom dançarino. Gostou da brincadeira. Ela batendo nos móveis, ele sorrindo. Acabou a música. Acabaram as risadas. Comercial. Ela sentou no chão. Ele deitou no sofá. Dormiu. Ele sempre dormia instantaneamente. Mas ela não se incomodava. Gostava de vê-lo, as mãos encolhidas, como criança rezando, sob a cabeça. E roncava alto. Motorzinho ligado toda noite — e dia, nos fins de semana passados em casa. (Domingo era dia de ficar em casa. Só saía quando tinha jogo do time alviverde.  Ele de camiseta, almofadinha e radinho de pilha à tiracolo. Às vezes levava uma cornetinha. Mas só quando era clássico. E voltava rouco, sempre. Reclamando, sempre. Ela, nem aí. Nunca gostou de futebol, mesmo). Ela lembrou que tinha de lavar roupa. Levou o cesto para a lavanderia e jogou tudo na máquina. Nem separou as cores. Pensou: ia manchar tudo. Mas nem se importou. Colocou sabão e amaciante bem cheiroso. Ligou a máquina. E saiu. Voltou para a sala. Ele dormia, ainda. E roncava muito alto. Ela riu por dentro e sentiu frio, apesar do sol. Era inverno. Daqueles lindos, com dias azuis, solzinho lá fora. E fumacinha saindo das bocas das pessoas nas ruas. Foi fazer um chá. “In other words, hold my hand, in other words, baby kiss me.” Dançou com a chaleira vazia. Ele na porta, riu. Como sempre. Também queria chá. Preto. Tem bolachinhas? Não, não fiz compras. Tudo bem. Só chá, então. Foram para a sala, beber chá preto. Ela queimou a língua. Ele riu. Desastrada. Ele segurou a mão dela. Dedos entrelaçados. Beijo na testa. Amavam-se em silêncio.

É que não precisa ser um amor assim, cinematográfico. Com aquela pressa. Com aquela paixão incontrolável. Já passaram dessa fase. E o amor… Ah, o amor é assim mesmo. Acontece nas pequenas coisas. Nos gestos comedidos, nas palavras silenciosas…

Mas é difícil falar sobre Ele, o Amor. Esse Amor com letra maiúscula. Tentei ler sobre. Dois livros me ajudaram na tarefa: Um Veneno Chamado Amor – ensaios sobre paixões, ciúmes e mortes, da argentina Carmen Posadas (Objetiva, 172 págs.); e Esse Amor de Todos Nós (Rocco, 231 págs.), de Marina Colasanti. Citações de amores de todos os tempos. Explicações sobre Ele. Científicas, até. Mas não sou cientista. Sou romântica, é o que dizem por aí. Dados sobre a adrenalina e a quantidade de hormônios liberados ao ver o ser amado não me interessam muito. Mas a quem interessar possa, “o amor à primeira vista é um estresse do amor. Assim que encontramos o outro, manifestam-se sintomas conhecidos universalmente: o coração dispara, a respiração acelera, a tensão aumenta, as mãos ficam úmidas. Mas esse estresse é acompanhado dos hormônios sexuais, dos hormônios tiroideanos, da insulina, e também da cortisona, o hormônio da defesa do organismo […] Tudo isso é regulado pelo hipotálamo juntamente com o cérebro  emocional, sem que o neurocórtex possa intervir para nos ajudar a saber o que está acontecendo […]” (explicação de Marc Schwob, no livro de Marina Colasanti, à página 81). Ah, mas é claro!

Quem nunca sentiu um rubor (palavrinha romântica!) no rosto, um tremor nas pernas, ao chegar perto do ser amado? Sintomas básicos de, pelo menos, uma paixãozinha. Que, na verdade, só é romântica nos livros. Na vida real, às vezes, é até desagradável. Frases desconexas, embaraço imediato. Nos livros é tudo tão bonito! “o amor é finalmente/um embaraço de pernas,/uma união de barrigas,/um breve temor de artérias,/uma confusão de bocas,/uma batalha de veias,/ um reboliço de ancas,/quem diz outra coisa é besta” (Gregório de Matos, à pág. 46 de Esse Amor…).

Mas aí cai-se naquela velha dúvida: é amor ou paixão? E qual a diferença das duas coisas? Uns dizem que paixão é uma emoção: forte, mas passageira. Algo como o medo. E que o amor é um sentimento: calmo, duradouro, trabalhado. Como o ódio. Por isso são tão próximos, o Ódio e o Amor? “É verdade que o amor é nebuloso. Tratar dele não é tão simples como parece. Determinar o significado exato do termo já é problemático”, diz Carmen, na página 17 de seu livro.

Imagine, escrever sobre o Amor… Tanto já se falou sobre Ele. E tanto ainda será dito, suspirado, gritado. Livros, filmes e músicas ainda encherão de esperanças os corações apaixonados. Que vivem fantasiando. Sobre como é possível encontrar a cara-metade no meio da biblioteca, ao derrubar uma pilha de livros. Ou em uma festa à fantasia, mesmo que por trás de uma máscara. Ou no saguão de um hotel, na Europa, depois de um passeio de gôndola. Ou tirando uma foto. Ou dando milho aos pombos da praça… Assim, meio por acaso. Que é como tudo deveria acontecer, sempre.

Porque, dizem, o homem foi castigado pelos deuses e procura seu complemento eternamente. Nem sempre encontra. Mas não desiste nunca. “Em primeiro lugar, os sexos da espécie humana eram três, não dois como hoje, masculino e feminino; havia ainda um terceiro […]; existia, naquele tempo, um que era andrógino; participava […] de ambos os sexos […] Eram dotados de uma força e robustez formidáveis, inflados de um orgulho imenso; atreveram-se  contra os deuses […] Depois de muito cogitar, Zeus disse: […] Por ora vou cortar cada um deles em dois […] Ora, fendido o físico em dois, cada metade sentia saudade da outra e juntavam-se […].” (Platão, à pág. 52 de Esse Amor…)

Cada metade que encontramos pensamos ser “a” metade. Que ficará ali nos completando, eternamente. Culpa daquela tal sensação de rubor e tremor. E do Beijo. Tão doce, o Beijo. “Nossas bocas estavam  tão próximas que o beijo devia ter começado há muito tempo sem que soubéssemos. […] Eu não encostei logo em teus lábios […] Eu os rodeei devagar. […] De tanto respirar, nossos lábios secaram. Eu molhei docemente seus lábios com a língua, e em seguida molhei meus lábios nos teus. Lentamente.” (Hélene Pedneault, pág. 94, em Esse Amor…).

Aí vêm os longos passeios de mãos dadas, as dancinhas de rosto colado, os almoços intermináveis, a intimidade, o sexo (não necessariamente nessa ordem). O chefe não incomoda. Nem a mãe, nem o pai, as contas, os filhos dos vizinhos gritando pela rua as músicas da Xuxa… Tudo é lindo. A vida fica colorida. Pelo menos até começarem os questionários, as preocupações, as dúvidas, os ciúmes (Othelos à procura de indícios da traição, Bentinhos atormentados pelos encantos de Capitus). E as decepções. Sempre há decepções. O que não desabona o Amor. Há quem não as veja como grandes problemas. Faz parte, dizem aqueles que passam décadas com as metades que encontraram. Coitados dos que se desesperam com as decepções e tornam-se amargos, enclausurados. Que acham que nunca mais vão amar. (“I am through with love, I’ll never fall again […] I must have you or none and so I’m through with love [..]”, escuto Sarah Vaughan cantando). Há sempre espaço para o Amor. “Amanhã há de amar, quem nunca houver amado, e, quem já houver amado, amanhã há de amar!” (Petrônio, pág. 123 de Esse Amor…).

O leitor deve se perguntar: “mas, afinal, que bicho é esse, o Amor?”. Eu não sei. Ninguém sabe, na verdade. Mas todo mundo quer. Sempre. E para sempre. “Amar é um não sei quê, que vem não sei de onde; nasce não sei como; contenta-se não sei com quê; sente-se não sei quando; e mata não sei porquê.” (Ovídio, citação em Um Veneno…, pág.17). E é isso.

Na segunda-feira, nenhum deles foi ao cinema, nem comeu bala de goma, leu ou escreveu um conto. Chagaram cansados. Ele antes. E a surpreendeu com um jantar. Fez macarrão. Era o que tinha em casa. Ela nem se incomodou com a bagunça na cozinha (panelas empilhadas na pia suja de molho vermelho). Nem podia. Olhou para a mesa com uma vela no centro e uma única florzinha, meio despetalada, ao lado de um dos pratos. E ele, de avental, rindo. Um pouco de macarrão preso à roupa. Al dente. Tirou o avental, puxou uma cadeira. Sem dizer palavra, ligou o rádio. “Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”, Chico cantava em ritmo de valsa. Os dois só se olhando. Não precisavam falar nada. Ela se sujou de molho, como na primeira vez que saíram. E ele riu, como sempre. Depois levantou-se e a puxou pelo braço. Dançaram pela cozinha, pelo corredor, pela sala. Tropeçaram na mesinha de centro e caíram. Riram muito. E ficaram sentados, de mãos dadas. As bocas sujas de molho se tocaram de leve. Por instantes, eram únicos no mundo. Olhavam-se nos olhos. Ele se levantou e a ajudou a fazer o mesmo. Andaram lentos até a cozinha. Ela lavou a louça. Ele só olhou, sentado, segurando a flor. Apagaram as luzes. Foram para o quarto. Ela colocou pijama. Ele só tirou a roupa cheia de macarrão e deitou do lado esquerdo. Ela se aconchegou no peito dele. E ficaram assim, abraçados. Amando-se em silêncio.

Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho