Renata Pallottini, admiradora da literatura policial do fecundo George Simenon (1903-1989) e de seu personagem, o Comissário Maigret — protagonista de dezenas de obras policiais —, já anuncia seu propósito nas primeiras linhas desta obra. A novela Chez Mme. Maigret é uma homenagem ao investigador, mas, sobretudo à sua doce e fiel esposa, Louise Henriette.
O leitor estará, então, diante de uma recriação do casal ficcional e da transfiguração de um personagem de apoio (a esposa) em protagonista (a viúva Maigret).
Pallottini tem, entretanto, outras intenções: incomodada (como se afirma na orelha da obra) com “o papel secundário, obscuro e irrelevante, reservado por Simenon a Louise” — destinada apenas a esperá-lo com um jantar “ou um chá acolhedor” —, a autora decidiu dar voz a Mme. Maigret. Dessa forma, num tom de intimidade com o leitor, em primeira pessoa, Louise relembra um dos casos policiais em que ela interveio, e nos conta como vive “hoje” sem o famoso marido.
A receita de Pallottini para a novela inclui um chocho mistério a ser desvendado por Maigret (ao qual a esposa aderiu), uma boa dose de reflexões feministas de Louise (partilhada com a amiga e confidente Lilly Pardon) e muitas situações, hábitos, cenas e locais parisienses (do belo museu Carnavalet aos tartines beurrées, ou croissants, à origem do nome Paris…) — um tanto didáticos, aliás.
O caso a ser desvendado é o de um jovem rapaz espanhol, encontrado no Sena (vivo ainda!), apesar de ter sido trespassado por uma lança antiga — aparentemente uma arma celta. Teria sido roubada do museu? Teria sido encomendada como contrabando por um rico colecionador? A suposta mãe da vítima, estranha figura, será central no desvendamento do crime, no qual Louise se envolve sob o pretexto de seu interesse arqueológico pela arma. Porém, fica claríssimo, sua aventura serve ao propósito de provar a si mesma que pode ser arguta, útil e investigativa, e não somente uma exemplar dona de casa. (“Meus trabalhos de agulha e as tarefas domésticas não me diziam nada naquele momento. Por que razão não podia eu investigar por minha conta?”)
Portanto, o que lemos é menos uma investigação às escondidas(!) da esposa, e mais um libelo de liberação da personagem oprimida. Pallottini optou por dar a Louise uma personalidade “feminista” (relevem-se as aspas) que, embora contrastante com a resignação bem resolvida da personagem original — e apesar das intenções da autora —, soa ingênua, pueril e revanchista. Arrisco-me a dizer que Pallottini, ao recriar Louise, pesou demais a mão nas angústias feministas e fez desandar a personagem:
Onde foi parar minha curiosidade pelos romanos e pelos vikings? Onde fui parar eu?
(…)
Ele (Maigret) me amava e me respeitava, mas não me admirava nem me levava a sério. Uma esposa eficiente, gentil, sempre a postos. Isso era eu.
A puerilidade de Louise é tão grande que acabará uma ingênua depoente do próprio marido. Quando este (facilmente) descobre sua ligação com o caso, interpela-a, de certa forma a humilha, e acaba lhe ensinando que seu lugar é mesmo em casa:
— Você sabe, Henriette, que suas (…) tentativas de conhecer melhor as origens do caso (…) só fizeram complicar, retardar e, por fim, deteriorar as nossas possibilidades — da Polícia, dos meus ajudantes, minhas — de solucionar o problema, não sabe?”
E o espírito intrépido de Louise deságua, descomposto, no ponto de onde partiu:
— Sinto muito pelo prejuízo que isso tenha causado, Jules. (…) Prometo, solenemente neste momento, não voltar jamais a tentar me imiscuir no seu trabalho e na sua vida profissional. Quanto ao mais, esteja certo de que procurarei continuar sendo a boa esposa de sempre.
Terríveis palavras para leitoras feministas. Na verdade, Louise jamais deixou de estar à sombra do marido — nem nos originais de Simenon, nem nesta obra. Haja vista que todas as suas lembranças só existem a partir da existência do marido e por causa dele.
(…) jantares na casa do casal Pardon, em que ficávamos à parte, trocando receitas, enquanto os homens falavam de coisas sérias (…): Será que só eu e Mme. Pardon éramos assim? (…) participantes das descobertas de seus homens e nunca das vitórias e das comemorações…
Só as lembranças, não! A Louise recriada por Pallottini nos oferece solução duvidosa para as angústias conjugais femininas. Depois da viuvez, quando a identidade de “Mme. Maigret” se dilui na morte do marido, que faz ela? Embora não perceba, eterniza tal identidade (concedida pelo nome de casada) a despeito da atitude (inverossímil?) e pra lá de rebelde: abre um cabaré (onde expõe os retratos de suas “meninas”), o “Chez Mme. Maigret” — nome do estabelecimento e desta obra.
E, em cima de tudo, o grande luminoso que nos identifica, em luzes vibrantes e tamanho especial: CHEZ MME. MAIGRET, assim mesmo, como deve ser, como é de justiça e como eu desejei por toda a vida!
Bem, a autora deu voz a Louise, como pretendia, mas, ao que parece, as novas tarefas da velha senhora continuam as mesmas: atender, servir e oferecer companhia, “com elegância e eficiência” a maridos famosos ou a cavalheiros solitários. À bientôt!