Espírito mineiro

Resenha do livro "Os mortos não dançam valsa", de Roberto Drummond
Roberto Drummond despede-se com um livro simples e envolvente
01/01/2003

Era uma tarde calorenta quando eu recebi a ligação. Estava trabalhando no jornal, em que ganhava a vida, escrevendo uma matéria sobre um global qualquer que esteve em Curitiba naqueles dias. A voz no telefone era desconhecida. Oi, Andrea. É Roberto Drummond, tudo bem?, perguntou a voz de sotaque mineirinho. Tudo certinho, respondi. (E me arrependi logo em seguida: “Tudo certinho” lá é resposta, guria!) Estou ligando para agradecer a resenha que você fez de meu livro. Ficou muito boa. Corei (sou dessas que coram, coisa mais chata!). Ora, fiz o meu trabalho. Gostei mesmo do livro. De novo uma resposta boba. (Tinha de tomar mais cuidado com os diálogos. Escritores são severos quanto a isso. É o trabalho deles, uai)

O livro em questão era O cheiro de Deus (Objetiva), sobre o qual escrevi uma resenha em setembro de 2001, neste Rascunho. Um livro muito simples, mas muito interessante — pelo menos para mim, porque fala de mistérios e de assuntos de família, temas que muito me agradam.

Passada aquela sensação estranha de receber um elogio, a conversa até que fluiu bem. Falamos algum tempo sobre o livro. E depois, sobre Minas Gerais. Conhece Minas?, perguntou Drummond. Conheci, no ano passado, duas cidades mineiras: Belo Horizonte — que achei bem parecida com Curitiba, com exceção do calor incrível, mesmo em junho — e Santa Luzia, cidade encantadora, respondi. E volta quando para conhecer outras cidades daqui, menina? Respondi que ia depender de quando pegasse férias no jornal. Ah, mas pegue logo, aí você vem me visitar e a gente conversa melhor. Achei uma idéia bem agradável. Drummond teria muito assunto interessante para uma conversa longa, bem ao gosto mineiro. Assim que se definirem as coisas por aqui, entro em contato. Tinha pensado até em fazer uma entrevista com ele para o Rascunho. Mas não tirei férias naquele ano. Queria esperar para fazer isso em 2002. Só que, por motivos que até hoje não entendo, fecharam o jornal em que eu trabalhava, no início daquele ano. Sem emprego é difícil pensar em fazer viagens. Adiei.

Soube que Drummond tinha uma idéia para uma novela, que deveria ser lançada até o final de 2002, e mais dois romances, para mais além. Passada aquela agitação da Copa do Mundo, ele iria fazer os últimos ajustes para a publicação de Os mortos não dançam valsa, a novela. Era fanático por futebol, torcedor ferrenho do Atlético Mineiro. Estava ansioso para saber se o Brasil passaria para as finais. Deixou escrita uma crônica, para O Estado de Minas, sobre o jogo Brasil x Inglaterra. Mas não assistiu, porque seu coração verde-amarelo/alvinegro não resistiu. Morreu em 21 de junho, pouco tempo depois de mandar uma versão da novela para o editor. Provavelmente não era a versão final, porque Drummond era um daqueles escritores obcecados pela perfeição — o que é impossível de se alcançar, a bem da verdade. (O cheiro de Deus, por exemplo, teve 23 versões escritas à mão e demorou 11 anos para ficar pronto).

Os mortos não dançam valsa foi lançado em dezembro de 2002 e integra a coleção Biblioteca Drummond, com a reedição de toda a obra do escritor, que nasceu em Santana dos Ferros (Vale do Rio Doce, Minas Gerais) e viveu cercado de lendas sobre mula-sem-cabeça, lobisomens e fantasmas, personagens fantásticos que normalmente povoam seus escritos. Como nesta novela.

Lu sempre sonhou em conhecer o mar e dançar valsa no calçadão de Copacabana. Mas morreu antes que seu marido — que havia prometido levar a moça de Minas Gerais ao Rio de Janeiro — conseguisse ter dinheiro ou tempo suficientes para realizar seu desejo mais caro. A morte, no entanto, nunca foi empecilho para os personagens de Drummond. Para Lu não seria diferente, uai!

Pois bem. A moça morreu. Mas o marido — que ficou conhecido por todos os personagens do livro como “o misterioso homem de Ray-ban” — não poderia deixar de realizar o último desejo da amada. Pediu a ajuda de um argentino meio bruxo, o Tango — neto do homem que embalsamou o corpo de Eva Perón — que, seguindo os passos do avô, deixou Lu como nova. E ainda usou a mesma técnica secreta que fazia com que seus pássaros embalsamados cantassem (embora não se mexessem ou voassem). E então, o homem de Ray-ban seqüestrou o corpo da mulher. Partiu a toda velocidade para o Rio de Janeiro.

A viagem não foi nem um pouco fácil, no entanto. A polícia estava à caça do homem de óculos Ray-ban e da morta que ousava querer realizar um sonho. Ela não tinha esse direito, diziam. As autoridades tinham medo de que todos os mortos resolvessem realizar os sonhos de quando eram vivos. Seria um levante terrível. O superxerife, encarregado de conduzir o caso, gritava ao megafone, de dentro de seu helicóptero: “Eu já sei tudo o que se passa no seu coração. Sei os propósitos escondidos no seu coração. Sei muito bem o que você está pensando em fazer. Não, você não quer levar a Lu para conhecer o mar e dançar uma valsa no calçadão de Copacabana. Você arquitetou um plano diabólico em conluio com Zumbi dos Palmares, Antonio Conselheiro, Lampião, o Rei do Cangaço e Maria Bonita e o Capitão Carlos Lamarca” (p. 75). Mas nada deteve o homem de Ray-ban e a morta que queria conhecer o mar e dançar valsa no calçadão de Copacabana. Populares tomaram as dores do homem. E mortos, de Lu.

Não há nada de excepcional neste último livro de Drummond. Mas a história é envolvente, escrita de forma bastante simples (como todos os livros do escritor, que era rotulado de pop, o que não o desagradava de todo, porque ele mesmo dizia que queria ser lido por muitos), com personagens fortes. Vivos ou mortos.

É uma boa leitura. Mas para quem espera grandes discussões filosóficas ou metafísicas sobre a morte, a vida ou os desejos, o livro pode decepcionar. Porque é leve, rápido, às vezes poético. A morte é doída, mas bela ao mesmo tempo. E simples. Mesmo para quem morre duas vezes.

Há quem diga que esse livro foi “premonitório”. Bobagem. A morte esteve presente em quase todas as obras de Roberto Drummond. A começar pelos títulos de livros (A morte de D. J. em Paris; O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado; Quando fui morto em Cuba; Inês é morta e O homem que subornou a morte). Os Mortos não dançam valsa é uma história de amor, aventura e mistério. Fala, obviamente, dos desejos, das fantasias que não realizamos por falta de tempo, de dinheiro, de ânimo. Então, a única alternativa que temos para realizar desejos embolorados pela vida (cheia de pressas, e horários, e empregos tediosos, e desânimos) é realizá-los depois de mortos.

Os superxerifes que estejam atentos. Drummond também tinha sonhos e poderá querer realiza-los agora. Um dos mais interessantes era o sonho de ser Papa. Foi religioso durante parte de sua vida, e pode ter ficado mais ainda, agora que está do lado de lá. Mineiros são prodigiosos quando o assunto é o além. Não é de se espantar que Drummond apareça por aí — depois de sentar-se ao lado do poeta de Itabira, que está a cuidar de todo o calçadão de Copacabana — vestido com aquela roupa branca e dourada e o chapéu pontudo, acenando a quem passe, seguido de uma prostituta e um padre de mãos dadas e de uma velha cega empunhando uma espingarda, enquanto apura o olfato para sentir o cheiro de Deus.

Os mortos não dançam valsa
Roberto Drummond
Objetiva
122 págs.
Roberto Drummond
Estreou na literatura — depois de trabalhar como jornalista e cronista de futebol, nos anos 60 — com o livro de contos A morte de D.J. em Paris, lançado em 1971. Depois, escreveu O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado (1978), Sangue de Coca-Cola (1980), Quando fui morto em Cuba (1982), Hitler manda lembranças (1984), Ontem à noite era sexta-feira (1988), Hilda Furacão (1991), Inês é morta (1993) e O homem que subornou a morte (2000), e O cheiro de Deus (2001).
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho