Esperando Carlabê

Em ficção sedimentada em registros de oralidade, Isabela Noronha explora a vida anônima de uma personagem sobrevivente das grandes cidades
Isabela Noronha, autora de “Carlabê”
01/09/2024

Em uma das cenas mais incômodas do filme Anatomia de uma queda, da diretora francesa Justine Triet, a personagem Sandra dá uma entrevista em sua residência, enquanto no piso superior da casa, uma música alta, P.I.M.P., do rapper norte-americano 50 cent, torna impossível a escuta. O mal-estar do frame ocupa a poltrona do cinema conosco, quando nós, assim como a personagem, também temos dificuldade de nos concentrar no diálogo da entrevistada com a jornalista. Em Carlabê, romance de Isabela Noronha, no lugar de música alta, temos dezenas de sons ambientes entrecortando uma conversa que acessamos de um lado só e talvez seja exatamente por isso que o romance faz um convite à escuta. É preciso focar, apesar das mil distrações ambientes que ocupam o texto feito rubricas de teatro. É preciso ouvir os ruídos e as interrupções como partes do texto.

A narrativa alterna dois registros. No primeiro, tem-se uma narradora em primeira pessoa, Saramara, falando sem parar com um suposto jornalista, que a acompanha atrás de informações que revelem a relação entre um corpo estendido na rua e o desaparecimento de Carlabê. Saramara divide a narração com a própria amiga desaparecida, cujo caderno-diário em sua posse compõe o segundo registro do livro. Porque ler e ouvir — ouvir com todas as interferências ao redor — são procedimentos diferentes, Noronha coloca o leitor diante de um exercício de difícil apreensão, escutar o outro quando este gesto parece estar fora da ordem do mundo.

Uma das forças da literatura reside na costura oculta que ela faz mesmo à revelia dos escritores. Como se muitas mãos participassem de um enredo comum que, em algum momento, poderá (ou não) ser percebido pela recepção. E assim confirmamos que livros são também feitos de outros livros, de personagens que, declarados ou não, saltam de suas supostas obras de origem para ocupar silenciosos os romances dos outros. Macabéa, alguns personagens anônimos de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, as narradoras hesitantes de Elvira Vigna, bem que poderiam perambular com as protagonistas de Noronha.

Outras vozes, tal como os ecos captados pelos áudios reproduzidos no romance, ocupam Carlabê. O romance me levou de volta a dois livros específicos dos anos 2000, Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra, e Sinuca embaixo d’agua, de Carol Bensimon, por razões que faço questão de apresentar. No primeiro deles, a gravação de voz é o recurso usado por uma das personagens, Érika, isolada numa ilha vulcânica, para falar com um ex-parceiro. Pouco importa se não teremos devolutiva de quem a escuta, como também acontece com o jornalista de Carlabê. No centro da cena, a voz que importa nos áudios é de Saramara, testemunha ocular da vida ordinária que a amiga levava.

No segundo, um conjunto de personagens reconstitui para o leitor a personagem Antônia, morta em um acidente de carro, e ausente no romance. Feito Godot, a jovem não está lá, mas segue presente no livro por meio dos relatos dos outros. Ou seja, o livro é estruturado por diversas vozes que reconstituem essa personagem que não conhecemos em vida.

Isabela Noronha radicaliza os procedimentos dessas duas autoras, criando uma narrativa que nos deixa nas mãos de uma única perspectiva. Apesar das anotações da mulher desaparecida, se pesarmos, quem de fato fala no romance é Saramara e isso é tudo o que temos. O romance ainda exige de nós um esforço de leitura que aceite todo tipo de interrupção possível como parte da narrativa. Os obstáculos da leitura, tal como o som alto no filme que abre este texto, estão aí para provocar exatamente esse desconforto.

Complete a lacuna
O incômodo da leitura é só o começo do trabalho do leitor. Por vezes, torna-se natural tentar preencher uma frase marcada por uma rubrica de interrupção: “[inaudível]”,“[tosse]”, “[janela sendo fechada, ininteligível]”, “[***]”, por exemplo. As entrevistas dadas por Saramara são intercaladas pelas anotações do caderno de Carlabê. Esta dicção se impõe não pelo simples fato de mudar a personagem e o gênero textual ficcionalizado, a anotação, mas porque, antes de revelar aspectos da vida íntima da mulher procurada na trama, ainda nos apresenta o perfil da personagem. A vida pregressa justifica o emprego detestável, a vida cheia de dificuldades financeiras. A saudade do irmão Abelardo está impregnada na personagem a ponto de ser incorporada ao próprio nome. A baixa escolaridade aparece expressa na escrita. Daí podemos inferir a vida não necessariamente contada de Carlabê, que tem uma dessas ocupações socialmente invisíveis. Ela trabalha em um açougue em São Paulo, é mais uma anônima na multidão.

A ficção nos permite tomar diferentes posições, por isso podemos optar por focalizar a leitura na sinopse, um corpo não identificado, uma mulher desaparecida, um emprego precário ou podemos escolher outro caminho, em que encontramos a relação de amizade entre Saramara e Carlabê. Aliás, até o fim, a informante não desiste da amiga e, mais que isso, revela em diferentes passagens um dado importante para nós mulheres — de que nossos relacionamentos mais duradouros, provavelmente, são de amizades com outras mulheres.

Nessa vida diminuta, que parece caber no caderno-diário que Carlabê dirige ao irmão Abelardo, ainda vemos as angústias, a solidão, o cansaço, a precariedade do trabalho, numa cidade que precisa de mão de obra como a de Carla, mas também parece querer lhe expulsar todas as vezes que ela se dá conta que não tem onde morar, que o salário não é suficiente para o básico, conseguir pagar um aluguel. Nessa vida diminuta, que cabe em poucas linhas escritas, sabemos ainda de uma relação abusiva com o patrão, Gonçalves, uma gravidez e o peso das escolhas que precisam ser feitas. A densidade dos temas tratados é inversamente proporcional às linhas escritas por Carlabê e acaba por espantar qualquer sinal de enfado que o livro pode causar até engrenarmos na leitura. Se ao ultrapassar a zona do estranhamento, o leitor sentir a vontade genuína de saber o paradeiro de Carlabê ou começar a se perguntar quem é o repórter que não ouvimos ou se o romance é afinal sobre Saramara, nenhum barulho poderá detê-lo.

Carlabê
Isabela Noronha
Companhia das Letras
199 págs.
Isabela Noronha
É jornalista e mestre em escrita criativa pela Universidade Brunel, na Inglaterra. É autora do livro infantil Adeus é para super-heróis, vencedor do prêmio Barco a Vapor de 2013, e do romance Resta um (2015), ganhador do prêmio da agência literária Curtis Brown.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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