Espelhos que envelhecem

Nos contos de "Na outra margem, o Leviatã", de Cristhiano Aguiar, os personagens estão em permanente procura por si mesmos
Cristhiano Aguiar, autor de “Na outra margem, o Leviatã”
27/02/2019

Escrever sobre o deslocamento é sempre, de certa forma, parafrasear a Odisseia, o relato de um regresso, é cantar uma peregrinação que se justifica por si mesma. E, como em Homero, o viajar torna-se o objetivo da viagem ou, como disse outro poeta, “o caminho se faz ao caminhar”.

Caminhar, no sentido real e figurado, é a principal atividade dos três personagens centrais de Na outra margem, o Leviatã, de Cristhiano Aguiar. As sete narrativas interligadas se desenrolam ao longo das andanças e devaneios de Faustine, Lucas e Natanael. Eles dividem um apartamento no edifício Hannah, em São Paulo, e os contos são instantâneos de encontros furtivos, no elevador, na rua ou em casa, confluindo com cenas das suas respectivas lembranças.

Mas esse não é um caminhar em linha reta. A narrativa é permeada por recuos e avanços, também no plano formal. O autor preza por um estilo fragmentário que foca nos assim chamados flashbacks e flashforwards (analepses e prolepses), recursos que acentuam com precisão o estado errante e o vaivém físico e emocional das personagens.

Já no primeiro conto, que traz o título central de Miniatura, o leitor se depara com essa fragmentação. O texto reúne quatro relatos breves que funcionam como pequenos recortes das perambulações reais e imaginárias dos personagens. Neles, o autor esboça um tema que reaparecerá, com roupagem variada, no decorrer do livro: a busca pelo eu através do e no outro. E o faz com imagens breves, mas vigorosas, que beiram o fantástico.

Vemos Lucas ser atraído pela música de um piano, o qual não sabe onde está e nem mesmo se existe de fato. Talvez ouça somente uma melodia que ressoa de algum ponto do seu passado?

Depois, testemunhamos o encontro entre ele e uma mulher (Luana), mas seus rostos se transformam em paisagens — “duas paisagens nos mantinham aprisionados”.

Ou nos assombramos com a imagem estilhaçada de Faustine no espelho de um elevador que “envelhece”. E presenciamos, por fim, uma aproximação fortuita entre Lucas e um faxineiro num banheiro de shopping, um clarão no qual se abre uma mínima brecha para outro mundo, outros mundos. Porém, as suas realidades parecem tão distantes como os planetas sobre os quais conversam, não acontece uma troca de fato e o protagonista segue seu rumo.

O elevador onde há pouco estava Faustine reaparece no segundo conto. Presos ali por conta de uma queda de energia elétrica e suspensos num intervalo de tempo e espaço, Lucas e Lina tateiam suas biografias no escuro. Ocorre uma intimidade inesperada, uma cumplicidade a partir da qual uma relação poderia desenvolver-se, mas isso novamente não acontece. Aqui também, o outro se revela apenas uma tela na qual se projetam desejos e lembranças próprias. Ele vê nela uma madona de um quadro de museu, ela revê nele o pai. Confinados em suas expectativas como no elevador, não conseguem de fato ver o outro.

Mergulho interior
À medida que o livro avança, a viagem segue cada vez mais para o interior dos personagens. Em O laboratório do senhor Mosch Terpin, Faustine e Natanael vistoriam caixas de livros deixadas por um tio dele, mas os volumes se revelam apenas pré-textos para uma leitura de cenas do passado, na busca por algum link que os conecte com o todo de suas histórias.

Em Os recém-nascidos, temos uma estrutura formal instigante, com a trama pulando entre duas perspectivas, a de Faustine e a de um professor na sua memória, numa constante oscilação entre várias camadas de tempo retiradas das reminiscências dos dois personagens como cascas de uma cebola. Imagem por imagem, eles vão descendo o fosso de suas biografias até atingirem o fundo escuro onde se abrigam as lembranças mais sombrias e recalcadas, num processo de confronto com os seus fantasmas, no fim do qual está a promessa de um “renascimento”.

Já em Teresa, o fantasma parece ser a própria protagonista, uma mulher-espantalho em cujos ombros os pássaros pousam. Esse é um belíssimo conto sobre a espera e a esperança; Teresa, uma espécie de Penélope no aguardo de um marido que regressa, mas não volta, pois se transformou em outro.

Não seria fácil definir o que teria mudado… Apesar disso, alguns achavam que seus gestos e palavras careciam de espontaneidade, como se o passado puxasse, de maneira lenta, porém teimosa, os braços de Petrúcio na direção de uma história escondida debaixo do tapete, uma história inconclusaComo se tivesse desaprendido de si e estivesse à procura do que tinha se perdido no percurso, na estrada.

Nos últimos dois contos, o tema central da busca por si mesmo retoma a forma das andanças e dos mergulhos. Em Desaparecido, o mendigo Caetano perambula pela cidade guiado por um anseio difuso. Vagueia numa persecução cega por algo que não se entende o que seja, fazendo coisas ininteligíveis aos outros. Ele não se conecta às regras do mundo ao seu redor. De fome, às vezes alucina.

Caetano vagava pela cidade sempre à procura. Fuçava latas de lixo não apenas para catar plástico, papel ou alimento. Buscava algo mais; um avesso.

Caetano sempre se dirige ao mesmo lugar, um comitê eleitoral. Intui que a pessoa que procura está lá dentro e o chama de “rei”. Um dia, consegue adentrar o local e se reconhece na foto de um cartaz preso à parede. Embaixo da foto, lê-se a palavra “desaparecido”. Ele mergulha no cartaz.

Em Leviatã, o último conto, o mergulho é real. Natanael salta no Tietê. O que ficamos sabendo por meio do relato de Lucas a Faustine que, paralelamente, relembra um episódio pessoal numa planície. Há um ir e vir metanarrativo interessante entre o contar do que foi contado (narração da narração) e a vivência em tempo real das histórias. As situações e tempos justapostos são polidos e lixados como a pedra que Faustine alisa, até que as suas próprias mãos se transformam em “pedra, em areia, em pontos”.

Aquilo que está embaixo está acima: enxerguei a todos nós distantes, a circunferência achatada rodopiando em meio a uma escuridão esculpida a partir das sobras dos deuses. É desta achatada circunferência que parte um grito; o grito perfura a atmosfera e se cristaliza em contato com o frio sideral. As cristalizações, inquietas, impróprias, rodopiam em torno do próprio eixo. Tudo se arrasta, sem tempo algum.

Natanael acaba por mergulhar no escuro grosso do Tietê e, para além do medo, tem uma experiência libertária de soltura de tudo, como na morte. Não deseja voltar, mas o corpo sobe à superfície por si mesmo. Lá, o espera o mergulhador profissional, e, na outra margem, o leviatã.

Em seu breve texto O andarilho, Nietzsche afirma que “quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra”. Em suas andanças, ele verá “sujeira, ilusão, insegurança… e o dia será quase pior do que a noite. Mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias”. No livro de Cristhiano Aguiar, os personagens estão em permanente procura. Suspensos no tempo e no espaço (elevador), fuçam em caixas de livros, latas de lixo e, sobretudo, em suas memórias, em busca de uma peça perdida que complete o quebra-cabeças de suas identidades. Eles vagueiam pela cidade, observam, interpelam passantes e mergulham em suas próprias sombras como em águas escuras para, então, voltarem à tona renovados. Com imagens pujantes e desdobramentos da alegoria do viajante, o autor descreve o autoconhecimento como um processo diário de morte e renascimento.

Na outra margem, o Leviatã
Cristhiano Aguiar
Lote 42
112 págs.
Cristhiano Aguiar
Nasceu em Campina Grande (PB), em 1981. Formado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco, é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seus contos foram publicados nos Estados Unidos, Inglaterra e Argentina. Participou da antologia Granta: Os melhores jovens escritores brasileiros em 2012. Escreveu os livros Ao lado do muro (2006) e Narrativas e espaços ficcionais: uma introdução (2017).
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho