Fullgás reúne os livros Guardar (1996), A cidade e os livros (2002), Porventura (2012) e textos inéditos de Antonio Cicero, incluindo letras de música selecionadas por ele e Arthur Nogueira, um dos muitos parceiros de música e poesia, assim como Marina Lima, Caetano Veloso, Lulu Santos, José Miguel Wisnik, Wally Salomão e Adriana Calcanhoto.
Foi letrista de vários hits da MPB, filósofo e estudioso da língua e da poesia greco-latinas. Estão presentes em seus poemas as formas clássicas das odes, elegias, epigramas, nênias, a métrica rígida, assonâncias e aliterações, rimas toantes e soantes, léxico e sintaxe de extrema acuidade, além das referências às figuras mitológicas e ao lema carpe diem, tempus fugit, marcando a herança greco-romana que o poeta afirmava estar presente em suas leituras desde a infância.
Mas, como bem aponta Noemi Jaffe, em seu indefectível posfácio ao livro, “basta uma rápida leitura de qualquer um de seus livros para perceber que essas formas, embora em grande parte mantidas em sua rigidez métrica, são, por assim dizer, aliciadas por intervenções atuais”. O aliciamento se percebe na forma clássica de um soneto em decassílabos heroicos atravessado pelas pequenas contingências do cotidiano, meras circunstâncias citadinas.
Em Guardar, livro de 1996, aparece a figura recorrente de Narciso, além da sensualidade, o mar, o amor, o azul, os corpos dos garotos, sob o sol ou o sereno da noite. É neste livro que está o mais lembrado de seus poemas, Guardar, musicado por sua irmã Marina Lima. Para Omar Salomão, trata-se de um dos poemas mais bonitos escritos em português ou em qualquer outra língua. “Guardar é um daqueles textos fluidos e complexos, leves e profundos. Na amarra, feita com ênclises, os pronomes vão iluminando os versos e nos levando adiante em um ritmo firmemente onírico, um ritmo de nuvem: visível e mutável — porque o poema é isso, sobre a coisa incapturável, o que significa guardar o que dá vida é o mais precioso, o que existe no instante em que existe, em que se lê, em que se vive”, destaca.
Mundano e sublime
No poema Prólogo, do livro A cidade e os livros (2002), Cicero pergunta e responde: “Por onde começar? Pelo começo/ absoluto, pelo rio Oceano”. Joana Hime aponta que, para o poeta, “o começo, o meio e o fim é o agora, o absoluto. Singular e fluido, como ele diz em seu ‘Líquido princípio, fluxo e fim’, pois ‘os momentos felizes não estão escondidos nem no passado nem no futuro’”. Joana situa a poesia de Cicero entre o silêncio absoluto e o linguajar popular, métodos tipicamente presentes no cancioneiro brasileiro. Para ela, o poeta/letrista/filósofo “parece criar uma espécie de ciência das soluções de suas cidades imaginárias, onde o mundano e o sublime coabitam”. E cita, para exemplificar sua análise, “nosso cancioneiro popular, como o bolero O lado quente do ser; o samba Avenida Brasil; ou o mais famoso Você me abre seus braços/ e a gente faz um país, de Fullgás”.
Muitos de seus poemas remetem ao sujeito lírico fora de si (como regra na modernidade) do texto de Michel Collot, traduzido por Alberto Pucheu e intitulado, justamente, O sujeito lírico fora de si. É o caso do poema O país das maravilhas, em que Narciso se reconfigura e se vê perdido no espaço diáfano do mundo. Desalojado de sua interioridade e destinado à errância, o sujeito lírico perde-se da pura interioridade, elidindo o dentro e o fora, o agora e o absoluto, o Leblon e o Olimpo.
O poeta perde a auréola em meio à multidão, projetado em direção ao exterior, à cidade do Rio de Janeiro ou ao país das maravilhas. Para Collot, “essa possessão e esse desapossamento são tradicionalmente referidos à ação de um Outro, quer se trate, no lirismo místico ou erótico, de um deus ou do ser amado”. O autor argumenta que, no lirismo, o sujeito deixa de pertencer a si mesmo ao se abrir ao outro, ao tempo, ao mundo ou à linguagem, submetido ao que o inspira. Nessa perspectiva, o lirismo revela o sujeito moderno como redefinido pelo pensamento contemporâneo — um modo legítimo de expressão que surge ao perder sua posição transcendente e se lançar em um mundo e em uma linguagem desencantados.
O lirismo de Cicero é materialista, pura imanência. O poeta se constrói a partir da interação com o mundo, a linguagem e os outros. Nesse processo, ele se define pela alteridade, emergindo do desregramento sensorial que lhe permite acessar um pensamento íntimo inacessível se recorresse apenas à introspecção. Ao se perder na matéria-emoção das palavras e das coisas, o sujeito se revela a si mesmo e aos outros, configurando um lirismo transpessoal. Perdida em si, a voz de outro ecoa.
assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.
O desejo é personagem presente em toda a poesia de Cicero — um desejo que porta o agora eterno “na líquida volúpia de um segundo”. A sensualidade do poema Onda mistura sonhos, ninfas e rapsodos com pedras, sóis, mares, beijo de língua e picolé de manga. E mais uma vez Noemi Jaffe é certeira em sua leitura, evidenciando que o ser se apaixona por si mesmo refletido no olho do outro. “Amar a imagem vista na superfície da água é como escrever à flor das palavras, como amar não o que está dentro, mas fora: a cidade, os livros, o mar, o sol; e ser, mesmo que por um instante, ‘coisa entre coisas’, ‘anônimo entre anônimos’, numa confusão desejada entre o real e o imaginário.”
Experiências passageiras
O terceiro livro de Fullgás é Porventura (2012), dedicado ao seu companheiro Marcelo Pies. Na poética de Cicero, o sugestivo título porventura pode refletir uma ideia de hipótese ou possibilidade, quase inapreensível, mas que o poeta tenta fixar — assim como o acaso que se revela acontecimento — em experiências passageiras com a cidade e os livros.
Pensando na ideia do poeta órfico, ou no poeta visionário, José Miguel Wisnik alega que o material poético “pode aparecer como fenda na superfície do olho voltado para o aqui e agora, e se exercer na pura instantaneidade”. É dessa maneira que o olhar do poeta vaza o olhar ideológico: reconhece o mito e o ultrapassa — “seu lugar é a aparição fugaz”. Para Wisnik, o olhar visionário resulta do apagamento da visão habitual, que, além de ver o indizível, excede o foco e os limites do ego.
Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Sem ser nem ver ele verseja.
São instantes de iluminação profana, na poesia de Cicero: a sensualidade, a dubiedade, o tempo do desejo e o tempo da poesia. O desejo de “ao menos no poema, agarrar o passageiro”. E o amor, que “volta indecente esplendor/ e loucura e tesão e dor”. Apresentam-se, reinventados, Proteu, o fio de Ariadne, a doméstica companhia dos feitiços de Circe, o santuário de Apolo, o poeta Prometeu, Dédalo e Ícaro, Orfeu, Medusa, Fedra, Minos — na ilha de Creta, nos mares homéricos cor de vinho, no Monte Hélicon, na Líbia, em Chipre ou sob a abóbada de Xanadu.
Filho da diáspora, Cicero ama a cidade de prédios de granito a quem consagra sua poesia, mas, nem por isso, deixa de cantar a Amazônia — ainda que se desculpe de sua herança babilônica, como se pode ler no poema Amazônia:
Em minhas veias, é certo, corre o sangue
selvagem das amazonas e os meus traços caboclos
traem os maranhões; mas trago,
como herança dos ancestrais, não saudade
da floresta, mas da cidade almejada.
O poeta se reconhece no reflexo da linguagem, na imagem simbólica de si que o poema devolve. O “espelho d’água” não é o da superfície física, mas o da palavra poética, que reflete e ao mesmo tempo deforma o sujeito. O “amor narcíseo” é também o motor da linguagem: o desejo de alcançar o outro pela palavra.
Antonio Cicero foi diagnosticado com Alzheimer em julho de 2023. Diante da doença que mina a mente e a memória — matéria de poesia —, optou pela morte assistida na Suíça, concretizada em outubro de 2024, seu derradeiro ato de poeta-filósofo.
Finalizo aqui com o depoimento de Omar Salomão sobre o que nos lega a poesia de Antonio Cicero:
Fugaz no seu próprio tempo (e por isso também, quando não podia mais guardar, escolheu seguir). Kairós. Intensa na sua própria medida. Curtida. Talvez por isso os poemas falem de ondas, e amor, e espuma, e canais, estradas, pórticos, viadutos, ferrovias, pontes, túneis. “Pronto para amar e zarpar” “enquanto os deuses se distraem”. O avião que passa espelhado na proximidade do olhar e do olho. Fullgás é o título perfeito para guardar esses versos agarrados com maresia.