“Todos nós temos nossas gavetas secretas”, diz o narrador de Desilusões de um americano, o mais recente romance da escritora Siri Hustvedt publicado no Brasil. O personagem se refere a uma história contada pelo filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) sobre um homem que compra uma escrivaninha usada e, numa manhã, se vê impelido a arrombar o móvel de que tanto gosta, descobrindo por acaso uma gaveta oculta que guarda manuscritos. O relato é uma metáfora do próprio pai do filósofo, que teria lhe revelado um terrível segredo antes de morrer.
Desilusões de um americano é sobre um filho que investiga os segredos do pai morto, mas a enganadora trama detetivesca é apenas um pretexto para a autora americana, filha de imigrantes noruegueses, falar de relações humanas e intimidades.
Exorcizar os próprios fantasmas é um trabalho doloroso. E as palavras vacilam quando cortejam um objeto tão complexo quanto a individualidade, que se ramifica em diversas ficções e narrativas pessoais. Talvez por lidar com uma linguagem inerentemente vaga, Hustvedt tenha recorrido a diferentes registros discursivos e metáforas para compor a obra.
Um dos motivos que a qualificam como uma das melhores autoras contemporâneas nos Estados Unidos é justamente o fato de usar técnicas literárias sofisticadas sem que o leitor precise se dar conta disso para se emocionar com a história.
No seu quarto romance, Hustvedt recorre a uma voz masculina, a do psicanalista Erik Davidsen, para narrar uma trama que mistura ficção e relatos autobiográficos. É, aliás, uma dupla estratégia da autora.
Primeiro, como recurso de metalinguagem, na medida em que o livro trata do caráter fantasioso da memória individual (“Nossas memórias estão sempre sendo alteradas pelo presente — a memória não é estável, mas sim mutável”) e irrealista da imagem que construímos para esconder o caos interior.
E, segundo, conforme revelado pela própria autora em entrevistas, uma maneira de criar um distanciamento do objeto de estudo, recorrendo tanto a um narrador masculino quanto a um profissional que tenta dar sentido a sentimentos difusos por meio da palavra — tarefa da própria escritora.
Segredos
Na história, Erik e a irmã Inga descobrem uma carta misteriosa no escritório do pai, Lars Davidsen, morto há quatro dias. A carta, datada de 27 de junho de 1937 e assinada por uma desconhecida Lisa, fala de um segredo que o remetente havia jurado “sobre a Bíblia” guardar, e que sugeriria que alguém havia sido morto.
O psicanalista começa então a entrevistar parentes e ler as memórias deixadas pelo pai em anotações e cartas. O propósito é descobrir quem é Lisa e qual o segredo que ela e o pai retiveram por tantos anos. No decorrer do livro, contudo, a história se desenvolve em outros enigmas, em personagens conectados, de algum modo, ao narrador.
O próprio Erik tenta esconder da família e dos pacientes, que o agridem a cada sessão, uma vida solitária e fragilizada. Após ser traído pela mulher e se divorciar, ele recorre às lembranças do pai para dar coerência à própria narrativa. No processo, se apaixona pela inquilina do andar térreo da casa.
Miranda é uma designer gráfica, negra e de origem jamaicana, que mora com a filha Englantine, de 5 anos. Ela recebe estranhas fotografias em que os retratados têm os olhos, na impressão das fotos, removidos pelo autor. Logo descobre-se que se trata do ex-namorado, o artista Jeff Lane, que sente um prazer psicótico em perseguir e manipular as pessoas.
Enquanto isso, Inga, viúva de um escritor e roteirista famoso (numa referência à própria autora, casada com o escritor Paul Auster), descobre que o marido, Max Blaustein, havia tido um caso amoroso com a atriz decadente de um de seus filmes. A atriz Edie Bly guarda sete cartas escritas por Blaustein que poderiam conter informações da vida oculta do marido de Inga, e que são cobiçadas também por uma jornalista e um biógrafo. Ao mesmo tempo, Inga precisa ajudar a filha adolescente, atormentada com seus próprios traumas e segredos.
11 de Setembro
Uma segunda camada do livro se articula numa dupla narrativa: uma conduzida por Erik e outra pelo pai. Ambas remetem a marcas deixadas pelas guerras. Lars Davidsen é um imigrante norueguês que vivia em uma fazenda no interior do Estado de Minnesota, onde perdeu a terra hipotecada na Depressão de 1929 e, depois, serviu como soldado na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Nos diários do pai, Erik encontra relatos como o de um soldado japonês que, mesmo implorando pela vida de joelhos, é morto pelo tenente da companhia de Lars. Ao mesmo tempo, Erik atende pacientes diagnosticados com transtorno pós-traumático ao voltarem da Guerra do Iraque. Os fantasmas da guerra também estão na sobrinha, que presenciou os ataques às Torres Gêmeas e fugiu com a mãe junto com centenas de nova-iorquinos no dia dos atentados.
A relação entre as guerras e a situação econômica nos Estados Unidos do passado e do presente também são reveladores da interioridade dos seres humanos. Do mesmo modo que os americanos reagiram criando uma fachada mítica de força e coragem para ocultar uma sociedade despedaçada pelo medo, assim o fazem os personagens que desfilam suas máscaras sociais no livro: Erik, reprimindo o choro e a fraqueza diante dos pacientes; Inga, tentando sobreviver à sombra do marido famoso; e a filha Sonia, que finalmente desaba num surto emocional.
Sob outra perspectiva, os contextos históricos deixam vestígios similares às traições e aos segredos íntimos, como se fossem cicatrizes pessoais exteriorizadas. É na dor provocada por essas chagas, gênese da individualidade, que está o desafio da literatura em recuperar uma fábula, ainda que seja num território situado além da linguagem verbal. “O trauma não aparece em palavras, mas num bramido de terror, às vezes com imagens. Palavras criam a anatomia de uma história, mas dentro dessa história há fendas que não podem ser fechadas.”
Polifonias
São as palavras, contudo, as ferramentas que o escritor tem à mão para tratar o problema. O interessante em Hustvedt, e que fica bem evidente em Desilusões de um americano, é como ela emprega discursos de naturezas diversas na construção do texto.
Um deles é a autobiografia, que ela adiciona à matéria ficcional de modo a gerar um produto quase indistinto. Os dados biográficos da autora estão nos personagens, tanto no psicanalista morador do Brooklin e filho de noruegueses, quanto na irmã casada com um escritor e nas mães representadas no romance.
Mas é no pai de Erik que o retrato é mais fidedigno. Segundo a autora, as passagens do diário de Lars que aparecem na obra são, na verdade, transcrições das memórias de seu próprio pai, Lloyd Hustvedt, morto em 2 de fevereiro de 2003. Ele autorizou a filha a usar o diário que escreveu para a família e os amigos, tornado-se um colaborar póstumo da obra.
Outra técnica discursiva da escritora é o uso de textos científicos, sobre neuropsicanálise e ciências cognitivas, e filosóficos, incluindo citações de Kant, Hegel, Comte e Kierkegaard, cujo pensamento é tema da tese de Inga. As falas soam naturais em personagens com formações acadêmicas, quando não eles próprios profissionais de áreas específicas, fato que confere naturalidade ao texto literário.
Nesses finos artifícios, a escritora tenta mapear narrativas falhas, cheias de franjas que fogem à malha da linguagem discursiva. A personalidade de cada um é como um puzzle com peças faltando, “rosebuds” que resistem à publicidade. Como diz Erik, sobre sua paciente suicida que alegava ter fantasmas internos que nem sempre queriam manifestar sua presença: “Acho que todos temos fantasmas dentro de nós, e é melhor quando eles falam do que quando não falam”.
Em Desilusões de um americano, os segredos enfim revelados se mostram ordinários, porque são, assim como os signos, meros estratagemas da escritora. É na linguagem, canal que transpassa o interno e externo — “Esta é a estranheza da língua: cruza as fronteiras do corpo, está ao mesmo tempo fora e dentro, e às vezes acontece que não percebemos que a linha divisória foi cruzada” —, que adquire forma a matéria imprecisa da vida. A verdade, portanto, está na superfície, mas só pode ser vista de modo oblíquo, à contraluz, nas margens do texto.