Este é um livro sobre a dor. Um livro sobre a perda. Sobre morrer.
Mas não sobre o luto. “O luto vem depois. (…) Se afundamos nele, vagueamos pelo resto da vida, contemplando os vivos de longe, sem nenhum desejo de nos juntarmos a eles” — diz Emmanuelle Lambert em O garoto do meu pai. Lemos neste relato os últimos momentos de um pai pelo olhar da filha, protagonista e autora, que entrelaça instantes do presente a memórias familiares, mas que também se tornam registros culturais de uma época.
“Eu conhecia o trajeto” — diz a narradora ao abrir o texto. Tal percurso implica apresentar uma rotina de visitação ao local onde o pai se encontra internado, há nove meses em tratamento contra um câncer de pâncreas, contra o qual será iniciado um derradeiro método experimental. Conhecer esse caminho também implica conhecer uma geografia hospitalar, seu excesso de luminosidades, seu cheiro estéril, seu piso frio — esta que não deixa de ser uma cartografia da dor, essa que muitos vivemos ao repetir os mesmos passos de “visitante” (conforme consta da etiqueta que colamos no tecido de nossa roupa) ao irmos junto àqueles que em breve irão nos deixar.
Em A hora da estrela (1977), Clarice Lispector diz que a morte é seu personagem preferido daquela novela. No contemporâneo (na vida e na literatura), parece que tanto a dor quanto a morte se tornaram personagens incontornáveis, figuras que se impõem sobre nós independentemente daquilo que estejamos narrando (nós ou o outro).
Porque este é um texto do eu. Em que pese a temática do fim diante do destino paterno iminente; desde o título até a concretização do relato, tudo é contágio na vida desta narradora. O título em questão revela como o pai, que sempre quis ter um filho homem, passou a fazer com a filha mais velha (a narradora) todas as atividades que faria com seu filho homem, fazendo dela “o garoto do [seu] pai”.
Era “sua filhinha, que ele arrastava meio que para todo canto como se ela fosse um menino: desde o vestiário de vôlei, onde lhe explicaram que era melhor eu esperar do lado de fora, até, alguns anos depois, o pub londrino do qual fomos expulsos com muita indignação numa língua que eu ainda não compreendia” — lemos.
Rara beleza
Ainda que seja declaradamente um relato, O garoto do meu pai é essencialmente literário pela questão formal (não que hoje em dia haja mais dúvidas sobre o que pode ou não pode ser literário) tanto por construções de rara beleza (em que pode se constatar o aceno ao poético), quanto pelas associações criativas nas construções das cenas. Por mais que a escrita seja literária, que a narradora seja elaborada por meio de boas escolhas que revelam sua personalidade de protagonista (podemos chamá-la de protagonista? de personagem?) e que o enredo pudesse facilmente ser visto como ficcional (ou autoficcional), há, ao longo do texto, algumas marcas do real que afincam o texto no campo das memórias ou do relato, como ao lermos que “Domingo, 15 de setembro de 2019, foi o último domingo do meu pai”. Assim somos apresentados a essa espécie de contagem regressiva em que os capítulos são intitulados pelos dias que compõem a última semana de vida daquele pai.
Waly Salomão, em Lábia (1998), escreveu que “A memória é uma ilha de edição”, de modo que, conforme anota o poeta, o que lembramos também passa por um jogo consciente/ inconsciente sobre o que desejamos manter à superfície para que faça parte da história que construímos sobre nós mesmos — mas também acerca daquilo sobre o que desejamos pôr uma pedra em cima e deixar nos subterrâneos da psique. Uma narrativa vivencial (conforma anota Diana Klinger em Escrita de si como performance) naturalmente trabalha com esse jogo, até por não ser uma biografia, um livro de fato de memórias de uma vida, mas um texto dessa escrita de si contemporânea que fragmenta a vida em episódios. O que lemos é um deles, é a história da narradora vivendo a morte de seu pai; não é a história de sua vida, não é a história da morte do pai.
Parênteses: cabe mencionar como tem sido recorrente em nossa literatura brasileira contemporânea a existência de narrativas vivenciais curtas, em extensão de novela, com alta densidade poética. A título de exemplo, cito o excelente Uma exposição, de Ieda Magri (Relicário), e Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel (Autêntica).
Fechados os parênteses, veja que as memórias que Lambert elenca são, portanto, uma escolha. Muitas delas compõem um retrato paterno visto por um olhar afetuoso e bem-humorado. No entanto, o modo como a narradora nos conduz pelo casamento fraturado apresenta a mãe como importante figura para sua construção, já o pai e sua postura de um liberalismo sexual são vistos com mesmo olhar crítico ao atribuído à época que usa da objetificação feminina como estratégia de marketing.
Ao adentrarmos as memórias, somos postos em contato com uma profusão de mulheres que formam a história e o imaginário da narradora. Para além da mãe, ambas as avós têm suas vidas mencionadas, bem como a tia-avó Rosette. Por vezes, misturam-se os percursos dessas várias mulheres que compõem a ancestralidade da narradora. Rosette xingava em árabe e espanhol; Betty, irmã belíssima de Dina, mãe do pai, é a quem teve dificuldade de chamar de avó. Dina, cabe dizer, é a que abandonou os filhos (“uma mulher que se libertou pagando um preço alto por esse voo”) e cuja frase decisiva desfez a impressão de vilã dos contos de fadas que a narradora construiu dela. Diz Dina: “Eu nasci mulher cedo demais. Deveria ter sido homem”.
Fantasmas dolorosos não param de murmurar nos ouvidos de adultos como meus pais, esses dois rebentos de filiações tristes e destroçadas.
Adentrar o passado é isso. É assumir para nossa realidade certo verniz perturbador. Escrever sobre um passado recente, como acontece em O garoto do meu pai, também. Os momentos de maior tensão e crueza são, a meu ver, aqueles vividos pela narradora diante do pai doente. O belo mosaico mnemônico que com eles se alterna de fato ornam e fazem deste um belo livro. Contudo, este também poderia ser um livro de espasmos, palavra posta de modo visceral pela autora — que não faz concessão. Espasmos desse pai ainda vivo.
Detalhes relevantes
A narradora se coloca como uma mulher que “gosta de coisas concretas”. Talvez por isso haja o enfoque em detalhar de forma sensitiva os momentos vividos no hospital, comentários que parecem irrelevantes, mas que se tornam centrais para os leitores que também são cuidadores — nas suas mais variadas formas de ser. Ela comenta sobre a vergonha do pai nu, da memória de irem à praia e ver o pai exposto, em contraposição ao pai mirando, no presente, o próprio corpo, a própria decadência do corpo no agora. A vergonha que sentimos quando, ao cuidarmos dos nossos velhos, vemo-los tomar banho no leito (já não é mais uma cama, já não carrega o signo do lar, da proteção, da familiaridade), sem ducha, sem excesso de água, quiçá podemos chamar de “banho” esse lavar por meio de panos úmidos e alguma esponja que, pouco aquosa, nem sequer é capaz de fazer espuma.
Cuidar dos acamados, esses que têm um cheiro específico, o cheiro meio morrinhento de quem passa horas roçando nos mesmos tecidos. Nós somos os nossos velhos, como somos os nossos mortos. O garoto do meu pai traz essa verdade incontornável. “Do esgotamento à esperança” é essa espécie de dança precária como vivemos a rotina de celebrarmos a agridoce presença do ainda. Ainda — ao qual nos agarramos como uma tábua de salvação.