Espécie de compensação

Para Sanches Neto, a infância é uma “escola cerceadora”
Miguel Sanches Neto: literatura que escraviza.
01/07/2005

Está lá, na página que antecede a da epígrafe: “Para Miguel Sanches Neto, in memoriam”. Quando decidiu dedicar Venho de um país obscuro e outros poemas a sua memória, Sanches Neto quis separar a criança que foi do escritor que hoje, aos 40 anos, entende seu ofício como o ato de coçar uma urticária, “intervalo entre a dor e o alívio”. Matar a si mesmo foi o meio que encontrou de evitar a leitura (rasa) de pessoas que insistem em ver confissão onde predomina a ficção. Essa é uma discussão longa e tão espinhosa quanto futebol, religião e política. Superficialmente, há quem viva para caçar coincidências e fatos em meio aos textos ficcionais de escritores; e há quem considere toda a escrita ficcional — sendo baseada ou não em experiências vividas. Para um e outro, os poemas reunidos ali são inesgotáveis.

Embora seja mais conhecido por sua prosa — venceu o Prêmio Nacional Cruz e Sousa de 2002 por Hóspede secreto, e é autor de Chove sobre minha infância (2000), que o escritor Domingos Pellegrini considera uma obra-prima —, Sanches Neto estreou na literatura há 15 anos com o livro de poesia Inscrições a giz (1991), que marcou sua estréia no mercado literário.

Venho de um país obscuro pede para ser lido de um fôlego só. Não há outra forma de passar por poemas que tratam de uma infância em preto-e-branco. Assuntos como esse, uma vez descobertos, precisam ser dissecados, pisados, repisados e, por fim, esgotados. E nada os impede de voltar para puxar seu pé enquanto dorme. A infância, essa entidade supervalorizada por muitos, é vista pelo autor como uma espécie de pesadelo, uma escola cerceadora, um país obscuro.

“O meu país foi uma pátria morta/ que só sabia fechar as portas./ O meu país não me deu conhecimento. /Na escola estudávamos silêncio. /O meu país não soube soletrar meu afeto, /me matou quando eu ainda era feto. /O meu país não foi um país, /foi um estado de sítio. /E eu vivi em seu coração /como quem morre no exílio.” Existe algo na poesia de Sanches Neto — improvável como um ressentimento bem-resolvido — que dá às páginas do livro uma intensidade incomum à literatura brasileira de hoje. Muito diferente de fazer versos sobre o vento que sopra nos galhos da árvore que faz sombra sobre seja-lá-o-que-for.

“Tenho vontade de habitar todas as folhas em branco para gastar este extenso estoque de silêncio”, escreve em Olvidado vivo. O silêncio poético que durou uma década e meia, o silêncio imposto pela ausência do avô ao pai — legado também pelo pai ao filho. “Nasci com o nome do meu avô. É que meu pai não o tinha conhecido. Acabei sendo uma espécie de compensação. Também não conheci meu pai, só que não tive um filho. Trago no nome apenas um vazio.”

Talvez as pessoas sejam todas uma espécie de compensação.

Venho de um país obscuro e outros poemas
Miguel Sanches Neto
Bertrand Brasil
108 págs.
Irinêo Netto
Rascunho