Tomei conhecimento da obra de Cristina Peri Rossi pelas redes sociais de Carola Saavedra. A partir dessa referência, descobri a publicação de alguns poemas da autora uruguaia na revista Az Mina, traduzidos por Glória Paiva. Do apreço aos poemas, cheguei a alguns de seus contos, precisamente os de Espaços íntimos, livro vencedor do prêmio Mario Vargas Llosa NH de relatos. Os deslizamentos responsáveis por meu encontro com esse trabalho e a rede de mulheres existente em torno da possibilidade de que a autora alcance os leitores brasileiros são circunstâncias pertinentes ao conteúdo dos dez contos reunidos na coletânea.
Explico: Espaços íntimos dialoga com os modos de vida e de estar no mundo da nossa sociedade. Tanto os encontros e desencontros são resultado, na mesma medida, dos esforços e da inércia dos indivíduos na condução do próprio destino. A prosa de Cristina se recusa a sustentar que o racional pode tudo — enquanto o esforço pode ser mera repetição, a inércia pode despontar como interrupção a partir da qual alguma transformação acontece. Dois contos, em especial, apresentam essa perspectiva: HB2 e Terapia. Neles, a autora ironiza o engodo de que a medicina pode levar a efeito a gestão perfeita dos corpos, tecidos mais por símbolos e palavras que, como todo resto, transbordam os limites do consciente e da intervenção.
Intervenção é o que Cristina faz quando se apodera da nossa época para dizer alguma coisa sobre ela, enquanto trata das compulsões, do adultério, da solidão. É também por isso que em Espaços íntimos a ideia de fracasso e sucesso surge como força de ambivalência. Diante dos personagens, cabe ao leitor se reconhecer num território de dúvida que o convoca à tarefa de situar os sentimentos produzidos pelo livro entre o desamparo e o alívio. Apesar de tocar em feridas narcísicas e revelar o funcionamento de certas engrenagens, a autora também nos indica que, apesar de tudo, estamos todos bem — não porque os tempos sejam de satisfação e equilíbrio, apenas porque não estamos sós em nossos mal-estares e nas estratégias — nem sempre louváveis — que criamos para lidar com eles.
A via sexual, por exemplo, é um dos principais subterfúgios de sobrevivência que salta aos olhos dos leitores. Inclusive porque como fio condutor em cada um dos contos está a libido — entendida aqui como pulsão de vida, energia vital, desejo — busca, enfim, pela satisfação. Em alguns contos, como Os três esses ou Dormir de amor, o caminho do encontro sexual é metáfora para essa ânsia de seguir desejante. Em contos como After Hours e A redenção, o foco se volta a qual posição pode assumir o desejo de alguém frente ao do outro. Já em Paciência, o protagonista parece seguir pela sublimação — caminho compartilhado, talvez, com a escritora que, pela via da palavra, transforma em outra coisa as agruras do nosso cotidiano.
Mas entre quem coloca o corpo em cena e aqueles para quem o corpo apenas encena, pode haver gozo ou só resta frustração? Ou só resta gozar da própria frustração? São histórias capazes de nos fazer outra pergunta: de que maneira as tecnologias e os novos modos de estabelecimento de vínculos dialogam com a capacidade de amarmos e de vivermos relações que ultrapassem a fantasia ou, em outras palavras, a virtualidade? Num tempo onde tudo existe como potência, o que de fato é possível colocar em exercício? Ou: de que maneira é possível exercer o desejo sem resvalar em suas facetas mais devastadoras?
Cristina Peri Rossi — num mergulho em profundidade — atualiza os dados de uma realidade que tateamos na forma de campos circunscritos. Para muitos, realidade até aqui somente possível de ser vivida na forma dos sintomas encarnados em narrativas que, também elas cheias de ambivalências, produzem lágrimas de riso e desconcerto. Por isso, trata-se de um livro para ler — e manusear. São histórias produtoras de espaços íntimos: lacunas ou dimensões capazes de abarcar as extensões finitas entre corpos ou objetos existentes ou factíveis.