Ao escrever O escutador, Carlos Marcelo nos questiona sobre os limites entre ficção e realidade. Tenta tocar o nosso desconforto ao borrar a fronteira entre esses campos. A obra se passa na Belo Horizonte dos anos 1950, cidade efervescente no cenário literário brasileiro, e acompanha a trajetória de Ademir Lins, jovem recém-chegado do interior em sua tentativa de se tornar escritor. Na capital, assume um ofício singular: o de “escutador” na editora Montanhesa, ouvindo atentamente os originais de autores consagrados para apontar eventuais falhas e inconsistências em suas produções. A função, aparentemente secundária, torna-se metáfora central do romance — uma reflexão sobre a importância de escutar, habilidade cada vez mais rara em uma contemporaneidade marcada pelo excesso de vozes.
Vale uma atenção especial ao trabalho editorial da Impressões de Minas. O livro vem como o resgate de um fac-símile de 1958, muito semelhante aos que eram publicados naquele período. Na sobrecapa a obra é atribuída a Ademir Lins, enquanto apenas na encoberta capa o crédito é dado a Carlos Marcelo — no miolo, notas de rodapé, que não podem ser negligenciadas, e grifos que desnudam o processo criativo de Ademir no texto original, acompanhado de comentários de Virgínia Lemos, editora da Montanhesa, importante personagem da trama, que também assina o posfácio.
A escuta
O romance é uma ode à literatura, sobretudo à literatura mineira, projetada para todo o país, trazendo ao leitor uma Belo Horizonte repleta de nomes marcantes de nosso cenário cultural. Ao defini-la como “cidade dos escritores”, nas palavras do próprio Ademir, entrega a simbolização de um espaço pulsante, de encontros, trocas e influências. A capital é descrita de maneira a ser montada como cenário onde circulavam Eduardo Frieiro, Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa, entre muitos outros, de modo a não apenas inserir o leitor no clima da época, evocando também a importância de Minas Gerais para a nossa produção artística.
Ademir Lins não poderia ficar encantado por acaso, tendo diante de si alguns dos principais nomes das letras do país. Todavia, ele não é um protagonista a se impor pela escrita. O que se destaca é a sua capacidade de absorver histórias alheias, refinando a sua própria arte na observação e na escuta. Uma dinâmica a dialogar com os tempos atuais, em que a superficialidade em parte derivada do instantâneo, dos discursos acelerados, prevalece. No romance, a escuta é constantemente reivindicada.
Virgínia Lemos me chamou para fora da saleta. Enfatizou que meu trabalho era o de registrar as ideias imaginadas por Aurélio nos últimos 30 dias e que seriam por ele desenvolvidas nos próximos meses. Se eu atentasse para erros de continuidade, contradições ou outros pontos problemáticos da narrativa seriada, nada diria ao escritor naquele momento. As objeções deveriam constar em relatório separado a ser entregue a ela, Virgínia, para as providências necessárias.
O escutador, uma alegoria para o nosso tempo, remete ao valor de uma escuta cuidadosa, capaz não apenas de assimilar palavras, mas, sim, de entender entrelinhas, silêncios e lacunas. Ao ouvir as leituras, Ademir incorpora não só um exercício de atenção estética, mas também um processo de descoberta e construção narrativa. Entendemos, então, que os clássicos da literatura não teriam sido escritos sem a escuta.
Eu poderia terminar essa resenha aqui, chamando a atenção para que todos nós leitores afinemos os nossos ouvidos até mesmo para que saibamos falar e escrever melhor. Diria para vocês todos lerem o livro, pois a argúcia de Carlos Marcelo dialoga com a nossa urgência. Entretanto, prefiro ir um pouco mais longe.
A confiança
Retomo a ideia sobre a infinita circulação de informações e a sua potencialidade de nos colocar em uma posição quase tautológica, naquele mesmo sentido evocado pelo filósofo francês Régis Debray. É como se não soubéssemos de fato como reagir ao volume de coisas que nos bombardeia. Tudo parece interessante, provindo de uma intermitente oferta. Se, por um lado, de fato, em meio a tudo isso nos tornamos progressivamente apáticos, ou perdidos, por outro nos tornamos desconfiados.
Não posso confiar em qualquer informação. Tenho de buscar a fonte correta. Não bastando, vou atrás da ainda mais correta. Porém, elas são inúmeras e miram em minha angústia e temor pela incerteza. Passam a me cobrar uma fidelização, um vínculo de confiança, algo seguro como: “tudo o que vier desse lugar, dessa pessoa, posso confiar, pois preciso confiar em algo, preciso acreditar em algo”. Somente assim consigo sobreviver em um mundo de algoritmos sem me tornar apático ou mesmo enlouquecer. E acredite, há lugar para loucos: basta um clique para constatar. Estamos quase desesperados a procura de algo ou alguém em quem confiar.
É aqui que Carlos Marcelo atua como escritor. Com invejável destreza, ao se ausentar, diz-nos: “confie nesta obra”. Ele se despersonaliza — sequer reivindica o seu nome na sobrecapa. Talvez seja o organizador dos escritos de Ademir. Diferentemente de outros livros, entrega uma ficção que não se inicia após a folha de rosto. Situa uma história em outra história e, em seguida, em uma realidade, uma realidade ficcional, porém, uma realidade. Ressalta que ali, sim, tudo pode ser do jeito que realmente se procura na literatura. Não há demarcações para que o leitor busque o início ou fim. A arte começou antes e você nem viu. As fronteiras estão borradas. Temos de nos reportar à obra, apenas a ela. E isso basta.
Em menos de três meses, a tiragem inicial de mil exemplares de O escutador estava praticamente esgotada. Eu não sabia, contudo, que o sonho de repetir a trajetória de best sellers como Presença de Anita se revelaria um pesadelo ainda mais aterrador do que o “diário dentro da noite” […]
[fragmento extraído do posfácio escrito por Virgínia Lemos]
A insegurança, a quase desesperada busca por alguém em quem confiar faz com que personalizemos essa inquietude. Abrem-se precedentes para as referências panfletárias, engajadas. Daí entendemos as razões de o escritor tentar se lançar antes de sua obra. Abraça uma causa, uma bandeira, angariando admiradores, pessoas ansiosas por confiarem em alguém, para, então, se “descobrir autor”. Já pode iniciar e vender a sua produção. Chegam a nós escritores que falam quase exclusivamente de seus livros, de sua obra, deixando a literatura à margem de tudo isso, como se o que tivessem produzido fosse algo completamente distinto. Ali, sim, tem um início, um meio e um fim.
O vício pode te levar a uma busca precisa, quase que de manual. Pode querer ver unicamente o autor na obra. Assim, em O escutador, caso confie em Carlos Marcelo, o livro em suas mãos se iniciará em um ponto. Caso confie em Ademir, é em outro. Se optar por Virgínia Lemos, pode ser algo ainda mais diferente. Resta-nos, então, confiar na obra, deixando-a autônoma como história. O nosso pacto passa a ser com ela. E somente após a sua leitura conseguimos avaliar cada um dos nomes de autores e personagens que nos chegam.
Quando li O escutador, percebi estar diante de algo distinto. Gosto de ver que Carlos Marcelo não publica a si mesmo. Não demarca o início da ficção, se recusando a entregar respostas fáceis, a despeito de manipular algumas referências bem conhecidas. Você pode acreditar em Ademir, ou mesmo em Carlos Marcelo, em Virgínia Lemos, na editora Montanhesa ou até em um contraditório Drummond falador. O que importa, afinal, é a literatura. E essa é a melhor homenagem que se poderia fazer a ela.