Escultor da memória

A obra de Patrick Modiano, num ato de resistência, busca salvar as pequenas reminiscências do esquecimento
Ilustração: Patrick Modiano por Oliver Quinto
01/09/2023

No anúncio do Prêmio Nobel de Literatura de 2014, a Academia Sueca aclamou Patrick Modiano pela “arte da memória com a qual ele evocou os destinos humanos mais inapreensíveis e descortinou a vida durante a ocupação”. Autor de mais de quarenta livros, Modiano retratou, com a inventividade reservada a poucos, as implicações da invasão nazista na França (1940-1944).

Em seu discurso de aceitação do Nobel, Modiano sugeriu que o escritor é um “prisioneiro de seu tempo”. O autor revelou estar apreensivo diante das expectativas da plateia — ele não é afeito a grandes exibições públicas —, para a qual se definiu como um “filho da guerra” ou, mais precisamente, um “filho da ocupação”.

A Academia nomeou Modiano, nascido nos subúrbios parisienses em 1945, o “Proust do nosso tempo”. Em Para o lado de Swann (traduzido ainda como No caminho de Swann), primeiro volume da magnus opus proustiana Em busca do tempo perdido, o sabor da madeleine — provavelmente, a mais célebre sobremesa da literatura universal — recorda o protagonista Charles Swann “de súbito” dos quadros de sua infância.

Em dois romances de Modiano, Um circo passa (1992) e Cena de um crime (2021), publicados recentemente no Brasil, a impossibilidade de se fugir da memória é um tema renovado. Walter Benjamin, um dos mais influentes ensaístas do século 20, chama esse impulso de memória involuntária: “É a obra da mémoire involuntaire, da força rejuvenescedora capaz de enfrentar o envelhecimento”.

Os dois livros de Patrick Modiano, escritos com um intervalo de trinta anos, têm pontos em comum: um jovem protagonista aspirante a escritor de nome Jean — negligenciado pelos pais —, uma misteriosa mulher casada com quem ele se relaciona, grupos engajados em atividades obscuras, redes de conexões ilícitas nas quais o personagem principal acaba envolvido, sugestões de crimes que ficam em aberto e o cenário de uma labiríntica Paris. Listamos, assim, os elementos básicos de um Modiano típico.

A série de repetições não é, entretanto, coincidência. A escrita de Patrick Modiano pode ser vista como uma obra em continuidade, na qual cada romance completa as ficções anteriormente publicadas. Há, é claro, aqueles que se destacam. É o caso de Dora Bruder (1997), livro que surgiu a partir de um anúncio no jornal Paris Soir e narra a procura de Modiano pela memória de Dora, adolescente judia desaparecida em meio aos horrores do Holocausto.

Mais uma vez, a obsessão do escritor pelo passado torna-se evidente. Para ele, essa busca é uma forma de salvar as pequenas reminiscências do esquecimento: um ato de resistência.

Espelhamentos
No caso de Um circo passa e Cena de um crime, os espelhamentos são evidentes. O segundo, publicado na França quase três décadas após Um circo passa, sai em desvantagem. Mas temos distinções formais. Enquanto Cena de um crime é construído por meio do eventual distanciamento de um narrador em terceira pessoa — ainda que vinculado à consciência de Jean Bosmans —, o romance da década de 1990 tem um narrador-protagonista que fala ao leitor em primeira pessoa.

É curioso notar a predileção do escritor francês por chamar os seus protagonistas de Jean. Por batismo, ele próprio é Jean Patrick Modiano. Assim como seus personagens, ele foi um jovem negligenciado pelos pais que encontrou um caminho na carreira de romancista. Por influência do amigo Raymond Queneau, Modiano começou a frequentar os círculos literários franceses, fato que impulsionou a publicação de seu primeiro romance La Place de l’Étoile (1968), aos 23 anos.

O título da estreia de Modiano pode ser traduzido como “O lugar da estrela”, em referência ao símbolo que os judeus eram obrigados a usar durante o Holocausto, mas também faz menção ao antigo nome da Praça Charles de Gaulle, uma das mais famosas da Europa — o termo “place” é possível de ser vertido para o português das duas maneiras.

Desde o primeiro romance, fica claro o pendor de Patrick Modiano para a literatura semiautobiográfica. Ou seja, o escritor traz à tona elementos de seus anos de formação pelas ruas parisienses e os transfigura em ficção.

Um circo passa joga o leitor em meio à desorientação. Na abertura da narrativa, Jean, de 18 anos, dá um evasivo depoimento à polícia francesa. Lá, conhece Gisèle. Tomado por uma paixão fugaz — e pela necessidade de agarrar-se a algo —convida a jovem para se juntar a ele em Roma, onde está prestes a se mudar para perseguir a carreira de escritor.

Com a sedutora Gisèle, envolta em mistérios e atividades clandestinas, Jean é iniciado na vida afetiva. Para o rapaz, a experiência é permeada pela ternura. Nesta relação, quase sem espaço para a luxúria e condenada antes mesmo de se concretizar, o apego de Jean é essencialmente sentimental.

É também por meio de Gisèle que ele se engaja em uma rede de conexões obscuras. Com a proximidade de sua viagem para Roma — em certos momentos, apresentada como uma fuga — e por causa de seu apego por Gisèle, Jean se deixa envolver pelo misterioso trio composto por Pierre Ansart, Jacques de Bavière e Martine Gaul. Tão rápido quanto se instalam na rotina de Jean, eles desaparecem, deixando o protagonista sozinho com sua culpa. Gisèle trava conhecimento com os três personagens em sua tentativa de fugir do marido, funcionário de um circo. Apenas aludido na narrativa, ele funciona como um perigo invisível.

No posfácio, Bernardo Ajzenberg, responsável pela tradução de Um circo passa, levanta hipóteses sobre o belo título do romance: “O que é esse circo que passa? A vida que deixa para trás inúmeras de nossas peles? As pessoas que nos acompanham por algum tempo e depois se afastam ou esvaem, engolidas pelas nossas próprias histórias? As circunstâncias?”. Todas as alternativas são possíveis, nos responde o enredo do autor francês.

A Paris dos anos 1960, pouco mais de uma década após a ocupação nazista na França — a grande obsessão de Modiano —, ainda é repleta de insegurança. Cada uma das ruas, vielas e boulevards da cidade anunciam uma nova ameaça iminente para Jean e Gisèle, oferecendo ao leitor o melhor de uma trama eletrizante.

Em Um circo passa, a memória é não apenas um gesto voluntário, mas também objeto de lapidação. Jean revê as cenas de sua juventude pela distância dos anos — o que se traduz na nitidez da lembrança.

A lâmpada, sobre o pé de um abajur, é muito pequena e muito fraca. Se pudesse fazer o tempo voltar para trás e retornasse a esse mesmo quarto, eu talvez trocasse essa lâmpada. Mas sob uma iluminação forte tudo aquilo correria o risco de desaparecer.

Do mesmo modo, quando reconhece Gisèle em uma velha foto, muitos anos depois, Jean cai em um choro convulsivo. A recusa ao esquecimento ultrapassa o estatuto da memória involuntária e alcança uma nova aura, que beira a obsessão. Perscrutar as sombras de um passado é o ato primordial dessa literatura.

A temporalidade da desventura de Jean e Gisèle, já determinada pelos fatos irremediáveis, aproxima-se do presente, envolvendo o leitor. De maneira geral, a narrativa de Um circo passa é contada por um longo flashback. Por meio de cenas aludidas, Patrick Modiano demonstra o seu senso de inventividade, capaz de transfigurar com agudeza e concisão os rastros da obscuridade de uma época.

O romance resume a tônica da ficção de Modiano, defendida pelo autor ao receber o Nobel:

Na Paris de pesadelo, onde qualquer um podia ser denunciado ou apanhado em flagrante na saída de uma estação de metrô, aconteceram encontros casuais entre pessoas cujos caminhos nunca se cruzariam em tempos de paz, amores frágeis nasceram na escuridão do toque de recolher, sem certeza de nos encontrarmos nos dias seguintes.

Novas lentes
Cena de um crime sofre a limitação das possibilidades de tradução. O original, Chevreuse, refere-se ao vale francês, próximo de onde Modiano passou a sua infância, na rue du Docteur-Kurzenne. Mas para o leitor não familiarizado com a biografia do autor isso representaria um problema. A tradução de Ivone Benedetti segue o esquema da língua inglesa (Scene of the crime), já antecipando a premissa básica do romance. Cena de um crime pode ser lido como um desdobramento da trilogia semiautobiográfica de Modiano: Primavera de cão, Remissão da pena e Flores da ruína.

No romance de 2021, Modiano olha para o passado a partir de novas lentes. É como se o escritor assistisse, da esquina da casa de suas lembranças, aos acontecimentos de sua infância. Esse distanciamento é representado pelo uso da terceira pessoa. Na tessitura da trama, o narrador ressalta o trabalho da memória.

A epígrafe, retirada do poeta Rainer Maria Rilke, sintetiza um dos grandes temas de Cena de um crime: “Quantos nomes não gravei na memória, ‘cão’, ‘vaca’ e ‘elefante’./ Faz já tanto tempo, só os reconheço de longe, e até a zebra — ai, tudo isso para quê?”. São os sons das palavras — em especial, Chevreuse — que evocam as ditas memórias involuntárias de Jean Bosmans. Desse modo, fragmentos perdidos no correr dos anos remetem a significados sentimentais para a protagonista.

Cena de um crime acena à modernidade. A madeleine de Jean, um homem do mundo pós-Segunda Guerra Mundial, é um relógio. Assim como na ficção de William Faulkner, o acessório representa o tempo mecânico — aquele em descompasso com a temporalidade psicológica, o mausoléu da existência humana. É o som do relógio de um desconhecido que leva Jean a uma época perdida.

O romance se passa em três tempos. A infância, a transição da juventude para o início da vida adulta e a velhice. De fato, os eventos narrados por Jean marcam a sua passagem para a maturidade. Seus algozes desaparecem, transformados em meros personagens quando escreve a sua história. Já velho, ele medita sobre o desenrolar dos fatos. É notável que Jean só escreve o livro distante de Paris e de seus subúrbios. Essa distância é marcada esteticamente pelo uso do narrador em terceira pessoa. Modiano propõe uma reflexão sobre o esfumaçar dos anos:

Seu professor de filosofia lhe confidenciara um dia que os diferentes períodos de uma vida — infância, adolescência, maturidade, velhice — também correspondem a várias mortes sucessivas. O mesmo ocorria com os fragmentos de lembranças que ele tentava anotar o mais rápido possível: algumas imagens de um período de sua vida que ele via desfilar aceleradamente antes de desaparecerem em definitivo no esquecimento.

Na trama, Jean é cercado por uma série de coincidências, relacionadas a uma das casas que morou na infância. Sendo o autor do livro Patrick Modiano, um mestre da narrativa de suspense, esperamos com grandes expectativas os atravessamentos do enredo. Bosmans se vê encurralado por um trio de homens, que acredita que ele tem pistas sobre o paradeiro de um tesouro oculto. Eles chegam até o protagonista por intermédio de duas mulheres: Camille, conhecida como Caveira, e Martine Hayward, com quem Jean tem um breve envolvimento.

Assim como em Um circo passa, uma rede de ligações perigosas é estabelecida entre os personagens do romance. Ao fim, o paradeiro do tesouro evidencia o crime pelo olhar de uma criança. Cúmplice, Jean reflete sobre a sua dose de culpa.

Os dois Jeans de Modiano — o de Um circo passa e o de Cena de um crime — são, essencialmente, cindidos. Eles se distinguem em um ponto fundamental. Enquanto o Jean da década de 90 vasculha a memória ao mesmo tempo em que é perseguido por ela, Bosmans tem um olhar curioso e mais impessoal, de modo que ele transfere a experiência para o seu romance. O primeiro vê com nostalgia e tons melancólicos a paixão perdida no tempo irrecuperável, já o outro enfrenta o estatuto da memória involuntária.

É importante apontar que Modiano não é apenas um autor de literatura policial, embora recorra a motes comuns do gênero. Tampouco é só um mestre do memorialismo, na melhor tradição proustiana. Seus personagens carregam ainda dilemas dignos daqueles de Dostoievski e a formação de um anti-herói de Dickens. Patrick Modiano é, antes de tudo, um escritor que sabe absorver o que de melhor veio antes dele. Mas ele acentua especialmente a figura do flâneur. Tipo literário do século 19, o termo foi cunhado por Walter Benjamin para se referir à escrita de Baudelaire. Um desafio à lógica capitalista, o flâneur é um investigador da cidade moderna. Patrick Modiano, um exemplo maior de escritor-explorador, é um típico flâneur de meados do século 20.

Modiano é também um escritor do tipo compulsivo. Com mais de quarenta livros publicados — o autor solta uma nova ficção na praça a cada dois anos, em média — é natural que alguns motifs perpassem todo esse conjunto, visto como quase homogêneo. A ocupação nazista em Paris é, de fato, o maior deles. “Essa Paris nunca deixou de me assombrar, e meus livros às vezes são banhados por sua luz velada”, defende o autor. Ele justifica ainda a sua extensa produção:

Eu chegaria a dizer que, enquanto você escreve os últimos parágrafos, o livro mostra uma certa hostilidade na pressa de se livrar de você. E deixa você, mal dando tempo de escrever a última palavra. Acabou — o livro não precisa mais de você e já te esqueceu. A partir de agora, ela se descobrirá através dos leitores. Quando isso acontece, você tem uma sensação de grande vazio e a sensação de ter sido abandonado. Há também uma espécie de desapontamento por causa desse vínculo entre você e o livro que foi rompido muito rapidamente. A insatisfação e a sensação de algo inacabado leva você a escrever o próximo livro para restaurar o equilíbrio, algo que nunca acontece. Com o passar dos anos, os livros seguem um após o outro e os leitores falam sobre um “corpo de obra”. Mas para você, há uma sensação de que tudo foi apenas uma corrida precipitada.

Diante da ficção de Modiano recém-publicada no Brasil, resta-nos torcer para que ele não se retire dessa corrida. Que o escritor continue a perseguir os seus fantasmas, com a originalidade esperada de um dos grandes nomes da literatura francesa — uma voz do século 20 que segue a ressoar com força em nosso tempo. Patrick Modiano já mostrou que é capaz de encontrar as suas próprias madeleines. Acima de tudo: um escultor da memória.

Um circo passa
Patrick Modiano
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Carambaia
144 págs.
Cena de um crime
Patrick Modiano
Trad.: Ivone Benedetti
Record
176 págs.
Patrick Modiano
Nasceu em um subúrbio de Paris em 1945. É autor de mais de quarenta livros. Aos 23 anos, publica seu primeiro romance, La Place de l’Étoile (1968). Já ganhou o Prix Goncourt, maior distinção literária francesa e em 2014 foi laureado com o Nobel de Literatura.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP e autora do romance Os tempos da fuga (Urutau, 2023), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

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