Escrituras sertanejas

Em “Livro dos homens”, Ronaldo Correia de Brito utiliza “escrita cinematográfica” para contar histórias universais
Ronaldo Correia de Brito: relatos reinventados.
01/09/2005

O corpo cravado de balas e a boiar, inchado e cinza, às margens do rio, é o de um santo homem. A cidade toda sabe, e repassa, boca a boca, a quem quiser ouvir. Ele é milagroso, esse Sebastião. E veio de longe, muito longe. Nem se sabe de onde. Não interessa. O que importa é que ele curou uma mulher marcada para morrer, vítima do veneno de uma serpente. Ali, onde Sebastião foi enterrado, ela lhe rogou por sua vida. E ele atendeu. Com clarão nos céus e sons divinos. Tudo o que a mulher agonizante tinha direito. Era óbvio que o moço, recém-chegado ao Paraíso, era a cura para aquele povoado. Um santo próprio, só deles. Que eles descobriram e a ele se apegaram. A alegria tomou conta daquele lugar e ninguém se importava que a história tivesse sido montada, como uma criatura de Frankenstein, com pedaços de outras. A fé que eles tinham não precisava de provas. Ela se bastava. E tornava-se tão poderosa que, para mantê-la viva, qualquer comportamento ou ação seria justificado. Mesmo o extermínio de quem dela duvidasse.

O que veio de longe, conto sobre esse tal Sebastião — santo inventado pela fé dos habitantes de um povoado de passagem no sertão brasileiro — abre Livro dos homens, de Ronaldo Correia de Brito, e dá a medida exata do que o leitor pode esperar. As histórias falam de fé — no que quer que seja, desde que alivie o sentimento de abandono, de ser esquecido pelos homens e, às vezes, pelo divino —, de amor, de ódio, de dúvida, de solidão, de alegria. De cometer erros e acertos. De vida e de morte.

Brito conta histórias reinventadas por suas lembranças, pelo que viveu, experimentou e ouviu dizer, no Ceará e no Recife. O cenário, como em seus outros trabalhos, é o sertão nordestino. Mas ele não aceita o rótulo de escritor regionalista. É fácil entender. Quase todos os personagens que aparecem nos contos poderiam ter qualquer nome e estar em qualquer lugar do mundo. A limitação geográfica é “ilustrativa”. É uma forma de oferecer ao leitor um reforço de imagens, já que ele viveu naqueles locais, passou por aquelas gentes e ouviu seus sotaques. É uma opção do escritor, que fala, sim, de assuntos que nos tocam a todos. O conto Eufrásia Meneses, por exemplo, poderia ter se passado em Curitiba, Paris, Alabama ou Tóquio. Trata de solidão, de desejos ocultos, de imaginações nascidas das sombras.

“A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.” (pág. 23).

Não é difícil imaginar que Ronaldo Correia de Brito era um piá daqueles que adorava sentar no chão e ouvir os mais velhos contarem causos, lendas, histórias da cidade e de Deus. Os personagens ouvidos devem ter povoado sua imaginação e pulado para o papel. Ali, escritos, continuarão vivos. Muito do que ele ouviu foi, certamente, assentado nos contos de Livro dos homens. Os caboclos de lança do maracatu pernambucano, as lendas de santos e suas eternas brigas contra os enviados do “coisa-ruim”, os animais que acabavam na mesa ou aliviavam os sonhos eróticos de adolescentes fogosos. Tudo matéria-prima para histórias que ficarão assentadas para sempre no papel. A sua versão das histórias. A interpretação do que está escrito fica a critério do leitor. Assim como na Bíblia, o livro de Deus, referência recorrente nos contos de Brito. Afinal, as histórias bíblicas foram escritas pelos homens, com suas interpretações e sua linguagem — que nem sempre abarca todo o mistério daquele que tudo criou.

A referência mais explícita do livro sagrado dos cristãos está no conto Qohélet (Coélet, aquele que sabe, filho de Davi). O texto trata da fé em Deus, a partir da leitura das sagradas escrituras (especialmente do Eclesiastes), e da fé nos homens, representados pela força e o brilho dos caboclos de lança. O divino e a tentação. O tempo de viver e o tempo de morrer. A morte, aliás, permeia todo o livro. Explícita ou veladamente está sempre ali, à espreita, fungando no cangote dos personagens desavisados. Em Mexicanos, é descrita pelo ponto de vista de um garoto, que vai — muito a contragosto, porque era carnaval e dia de sair no bloco dos mexicanos — no enterro do tio assassino e suicida.

“De um lado e de outro dos velórios em contenda, ninguém chorava, como se não houvesse o que lamentar naquelas mortes. À luz cinzenta da tarde, a cidade parecia mais feia. Olhei as flores, ansiando por uma revelação de alegria. Mamãe me arrastava para seus abismos, negando-me a vida a que eu tinha direito. Aspirei o perfume das rosas e recusei-me a afundar com o morto. Ele que descesse sozinho os sete palmos de terra.” (págs. 91 e 92)

A escrita de Ronaldo Correia de Brito é visual, cinematográfica. Mas também simples e poética. Em Milagre em Juazeiro, é possível ver a alma sertaneja no rosto dos romeiros. Movidos pela fé, eles buscam sua história. Por si mesmos, em meio a tantos iguais.

“Cansados e cobertos de poeira, já nem contemplavam as estrelas, escondidas por uma nuvem que se derramou em chuva fina. Obrigados a se proteger, deitavam-se uns sobre os outros. A chuva, mesmo molhando-os e aumentando o frio no turno do sertão, era sempre a mais amada das bênçãos. Bendita sempre, mil vezes bendita, mesmo que causasse estragos. Que dano nenhum era molhar as roupas e o rosto de Antônia, de pé, recebendo os pingos d’água na cabeça, batizando-se romeira, em busca da Terra Santa e de seu povo.” (págs. 74 e 75)

A alma sertaneja, mais regional e explicitamente, aparece nos contos em que a cultura nordestina se mostra em toda sua cor e som. Como em Cravinho, em que o protagonista, Mateus Cravo Branco, é personagem de reisado nordestino. Ele conta sua história, fala de seu envolvimento com o folguedo. E de como foi confundido com uma bela moça. A peleja de Sebastião Candeia também tem as cores ensolaradas do nordeste. É uma referência às lendas e à força do homem, que consegue, com sua dança, adormecer o jacaré-serpente em cujo lombo repousa a Virgem, sobre uma pedra.

O amor feito de silêncios e memórias, e o que só conhece o desejo e a indiferença estão nos contos Da morte de Francisco Vieira e O amor das sombras. No primeiro, Clara Duarte recorda-se do amor, feliz e colorido, mas interrompido tão cedo pela morte de Chiquinho, seu único homem, que acumulou tralhas que agora enchem dois quartos inteiros de um vazio terrível. Laerte Pereira, na segunda história, também conheceu apenas um tipo de amor. Mas era um amor feito de migalhas. Concedido para aplacar os desejos da mulher que nunca poderia ser sua.

“A estreiteza do batente obrigava-os a uma proximidade de aconchego. Laerte foi tomado de um enlevo que adormecia o corpo, como se milhares de formigas o percorressem em todas as direções. Uma tontura queria desmaiá-lo e o coração se acovardava acima das cem pulsações.” (págs.116 e 117)

A lembrança da escravidão e a ilusão permeiam o conto Maria Caboré. A personagem-título é uma negra que vive de pilar arroz e fazer serviços nas casas da vizinhança em troca de comida e uns poucos trocados. Exatamente como faziam muitos de seus antepassados, gente que não chegou a conhecer. Apenas ouve os tambores e os sons que parecem vir de além-mar. Como não quer se deitar com os homens da região, porque sonha em ser amada por homens de “rostos escuros, de uma terra de muito sol”, a comunidade local brinca com ela. Diz que Príncipe Odilon e o Rei-do-Congo vêm da África para buscá-la e com ela se casar. E ela acredita. Porque para diminuir a dor de não ter casa ou família, essa é a verdade. Foi para isso que nasceu.

O último conto é o que dá nome ao livro. Fala do apego à família e às tradições, mas, sobretudo, fala de honra. Oliveira Francisco e o primo Antônio Samuel tinham a incumbência de vender as reses da família ao coronel Júlio Targino, que fez a proposta mais alta pelo gado, mas só poderia pagá-los em três meses. Resolveram esperar na fazenda do coronel mesmo, para evitar que o homem deixasse de cumprir com o negócio. Enquanto Oliveira se apegou ao comprador do gado, Antônio Samuel fazia de tudo para cumprir a promessa que fizera ao pai, na saída de casa:

“— Oliveira, você vela pelo sangue de Samuel e pagará pelo que acontecer a ele. Samuel, você é bem jovem ainda, porém já responde pela vida de seu primo.” (págs. 162 e 163)

E assim fizeram.

Livro dos homens
Ronaldo Correia de Brito
Cosac & Naify
173 páginas
Ronaldo Correia de Brito
Nasceu em Saboeiro, cidade do sertão dos Inhamuns (CE). Mudou-se para o Recife aos 17 anos e, lá, formou-se em Medicina. Concilia as atividades de médico e escritor, e também trabalhou com cinema e teatro. Publicou os livros Faca (contos) e O pavão misterioso (infanto-juvenil). Prepara agora um romance.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho