Escritores são de Marte, gramáticos são de Vênus

Artigo em duas partes escrito por ocasião da morte de Napoleão Mendes de Almeida, em 1998, e só agora publicado
Marte e Vênus/Andrea Mantegna 1497
01/05/2003

Parte 2: Literatura brasileira e língua portuguesa
Amigos escritores — a maioria de minha geração —, atendendo a um pedido meu, mandam-me regularmente seus livros. Um deles, defendendo-se das cricríticas que fiz ao romance que acabara de publicar, foi sincero. Quando, depois de louvar diversas passagens da obra, apontei-lhe de maneira petulante dois ou três deslizes sintáticos, confessou-me que, como a mim, também o incomoda bastante a falta de domínio da língua portuguesa: “Não acho que você esteja exagerando quando diz que alguns deslizes gramaticais tiram um pouco da credibilidade do autor. Também tive carência de bons professores no ginásio e no colégio, e também fui um aluno muito relapso (um eufemismo que uso para não dizer que sempre fui e ainda sou um tanto limitado para fixar todas essas regras gramaticais). Acho que continuo escrevendo de ouvido. Falta-me conhecimento científico da língua, o que não é pouca coisa.”

Não mesmo. No verbete Redação, do Dicionário de questões vernáculas, diferentes palavras expressam a mesma idéia de força e precisão literárias: “É a gramática munição para o combate; quanto maior seu conhecimento, tanto mais provido o combatente para a luta. Tanto mais apercebido de apetrechos, tanto maior o preparo para o embate das armas. É a gramática que provê o perfeito terçar pela vitória; é ela quem fixa em moldes uniformes a expressão; é o seu conhecimento que dá lugar à elevação do estilo; jamais a gramática tolheu ao gênio a liberdade estética da linguagem. Enquanto o estilo é a maneira peculiar, individual de expressar cada escritor o seu pensamento, a gramática é o esqueleto, é o andaime em que ele se apóia. (…) ‘Mandei ele vir’ — É obrigação de um mestre atalhar: ‘Mandei-o vir’ é que se deve dizer. ‘I told him to go’ — não é assim que o seu professor de inglês ensinou a dizer? Se num idioma estrangeiro você constrói exatamente como o latim, donde também veio a nossa construção, por que você diz ‘mandei ele vir’?”

Da batalha campal entre os gramáticos e os escritores que defendem a fala popular, o próprio Napoleão, no papel de correspondente de guerra, nos deixou alguns relatos: “Monteiro Lobato chegou a declarar na segunda edição dos Urupês que saía ela aumentada com algumas pontuações e alterada nalguns pronomes colocados por um gramático seu amigo, dando-nos a entender que pouco apreço ligava a tais emendas, impressão que veio a confirmar em artigo em que defendia formalmente a libertação dos clássicos e dos gramáticos portugueses ‘porque falamos uma língua que deve ser nossa’.” (Do verbete Língua portuguesa).

A partir do momento em que, com as vanguardas do início do século, a transgressão foi eleita a palavra de ordem da literatura contemporânea, gramáticos ortodoxos, francamente avessos às principais conquistas do modernismo — o discurso coloquial, o fluxo de pensamento e os jogos de palavras, por exemplo — passaram a concentrar sua atenção nos Rui Barbosas e Alexandre Herculanos, dificilmente aceitando que um texto, para ser literário, tenha de estar sempre na contramão. Os novos escritores, por seu turno, parecem temer o estudo sistemático da gramática como algo que irá cerceá-los, estancar-lhes o fluxo criativo, torná-los caretas ou, pior, parnasianos. No entanto, quem há de negar que — da mesma maneira que o compositor erudito deve ter total conhecimento de escrita musical, e o pintor, o gravurista e o escultor, das ferramentas que utilizam — o conhecimento de particularidades semânticas e sintáticas da última flor do Lácio, inculta e bela, só faz conferir maior liberdade de movimentos ao escritor? Literatura é o terreno da ruptura, da rejeição da tradição. Mas tão mais forte, tão mais coerente será esta rejeição, quanto mais conhecedor da tradição for o escritor. Com a palavra, quem é do ramo.

Ariano Suassuna: Quem faz a língua falada é o povo. Os escritores e gramáticos de bom senso cuidam de imprimir alguma ordem, que mantenha una a linguagem. Não acho que se trate de discussão frívola. Agora, os escritores e gramáticos devem ter bom gosto e boa vontade ao tratar dela. Quando menino, estudei português na Gramática metódica do Napoleão, mas não conheço os artigos dele, de modo que não posso julgá-los com imparcialidade.

José Paulo Paes: Nem tanto ao mar nem tanto à terra. A língua pertence a todos nós, sim, mas da mesma maneira como num país democrático são nossas as ruas. Ninguém pode vir e erguer um muro fechando a rua onde você mora, sem consultar os demais usuários. A língua é um bem comum que deve ser respeitado e cabe principalmente ao escritor usá-la com responsabilidade e defendê-la de políticos e publicitários. Isso não significava que o escritor deva ser servil a todo o tipo de gramatiquices e de tabus puristas. Nem que deva se deixar levar por lingüistas que alardeiam que não existem mais regras. Isso é pura demagogia, pois, na maioria dos casos, esses mesmos libertaristas costumam escrever suas defesas do “não existem regras” respeitando todas as normas gramaticais. Cabe a nós selecionar o que é transitório do que deve permanecer. Por exemplo, o termo copacabanal, que a TV anda veiculando, é hediondo, assim como dezenas de outros pertencentes ao informatiquês: acessar, deletar, escanear. Nada mais são do que traduções imbecis, sem nenhum critério, de termos ingleses. Em contrapartida, gírias como curtir e papo furado são ótimas, porque enriquecem o vocabulário. A língua deve ser apreendida por impregnação, não por decoração. Os gramáticos ortodoxos são, infelizmente, doença que não tem cura. Mas estão em extinção.

Ignácio de Loyola Brandão: É bom que as pessoas se peguem. Esse cabo-de-guerra entre o povo e os gramáticos é salutar, pois faz com que a língua enriqueça. Às pessoas, no dia-a-dia, cabe criar novos vocábulos, novas locuções; aos gramáticos cabe zelar para que a língua não vire uma casa da mãe Joana. Graças a essa soma de esforços há muita gíria legal, de épocas passadas, que hoje já está dicionarizada. A literatura brasileira contemporânea, se tomada em bloco, reflete o que o povo fala. O escritor de hoje se alimenta do coloquial. Mas se, de um lado, a fala das ruas contribui para a boa literatura, do outro, é necessário policiamento para que os erros não se tornem norma, não desvirtuem tudo. A presença do Napoleão era muito bem-vinda. Ele costumava ser bastante pertinente, mesmo quando esculhambava, quando nos forçava a botar o pé no chão. Com qual dos dois grupos estou alinhado? Com ambos — ou seja, com o grupo da língua portuguesa.

Ferreira Gullar: Quem faz a língua é o povo, sem dúvida nenhuma, mas é claro que há que se preservar as normas fundamentais do idioma. É absurda a quantidade de expressões pernósticas como “isso não significa dizer” e “vou-me trocar”, importadas sem nenhum critério do inglês. O coloquial é um recurso precioso, desde que usado com equilíbrio. É fundamental que o poeta tenha sensibilidade para zelar pela qualidade lingüística, mesmo quando quiser reproduzir o falar nordestino, por exemplo. Erros crassos, como o que vemos a toda a hora nos jornais e nas novelas, são inaceitáveis. Dizer “foi um dos que fez”, “agudizar a percepção” é inaceitável. O presidente da República falou, tempos atrás: “Não podemos mais postergar a solução dos problemas”. Que palavrão é esse? Por que postergar, e não adiar? A língua é um organismo vivo, ela cresce e se transforma, mas de maneira criteriosa. É claro que o escritor tem de ter liberdade para violar certas regras. Mas essa violação tem de fazer sentido. O poeta só corrompe o que tem forma correta, o que tem norma. Violar uma prostituta? Não faz sentindo nenhum. Só faz sentido se for uma virgem.

Décio Pignatari: Quem faz a língua é, de um lado, os gramáticos, do outro, o povo. Tanto isso é verdade que, quando a Cristina Pomorska, mulher do Roman Jakobson, esteve no Brasil, ela fez questão de visitar as famílias de ucranianos que haviam se estabelecido em Carapicuíba, antes da Primeira Guerra Mundial. Nessa visita chamou a sua atenção o fato de o ucraniano que se falava em Carapicuíba já não ser mais falado na Ucrânia há muito tempo. O ucraniano daqui, sem a interferência dos jornais nem da TV, havia parado no tempo. É sempre bom lembrar que o português não nasceu do latim, mas da mistura do romanço lusitânico com o vulgar, uma corruptela do latim. Mas sem norma culta não há língua. Não há jornalismo, não há cinema, não há música popular. Por parte da população, o que se percebe é uma fome crescente por parâmetros mais claros, daí a ascensão de jovens professores como é o caso do Pasquale Cipro Neto. O problema é que no mundo lusófono, diferente do espanhol e do anglo-saxão, por exemplo, não há norma culta. Por isso nem mesmo nossos gramáticos conseguem se entender; por isso cada jornal tem seu manual de redação, que nada mais é do que a tentativa de fixar modelos claros onde não os há. Somente depois que uma comissão de especialistas, de gente de nível A, montar um sistema de norma culta com manuais práticos de uso para todos os países de língua portuguesa, as posições extremadas deixarão de fazer sentido. Gramáticos ortodoxos, como o Napoleão, não existem mais. Eles fazem parte de um mundo arqueológico, folclórico, sem nenhuma visão de lingüística, sem nenhum conhecimento de Saussure ou de Chomsky.

Mia Couto: Nem o povo nem os gramáticos são os sujeitos dessa construção. O mérito é de um processo sem rosto, uma dinâmica social erguida entre a norma e a desobediência. Como um rio que é feito de água e margem. A língua é um poder, sim. No caso de Moçambique, em que convivem num mesmo mosaico diversas línguas, a escolha de uma — o português — implica uma relação de dominação e subordinação das restantes. Escreveram artigos sugerindo que eu abandonasse a via da recriação e da transgressão. Mas todo o escritor é um criador de uma língua nova — a sua própria, individual e única.

Porém falar de português é falar inevitavelmente não só de literatura mas de escola, palavrinha maldita, que ainda hoje dói muito nos ouvidos dos sobreviventes — no meu caso, dos herdeiros dos sobreviventes — de maio de 68. Sem se referir ao pega-pra-capar entre estudantes e polícia nas ruas de Paris, Napoleão, agora no verbete Língua brasileira?, detém-se apenas na questão do orgulho à terra de origem: “Muito válida é a afirmação de Rui: ‘Entre nós, bem ao contrário do que se passa na França, os melhores alunos transpõem os cursos secundários e superiores sem o menor germe de estímulo do idioma pátrio’. Cinqüenta e poucos anos após essa afirmação, lemos no TIME de 12 de março de 1973: ‘Quanto aos franceses, ensina-se-lhes tão jactanciosamente nas escolas que eles devem vangloriar-se da cultura e da superioridade lingüística (é nosso o grifo) que João Cocteau chegou a confessar: ‘Quando menino, eu pensava que só os franceses sabiam falar, enquanto os estrangeiros fingiam que sabiam’.”

De fato, o estudo do português não é algo fácil; requer tempo e paciência. Há armadilhas por toda a parte, e quanto mais progredimos mais prisioneiros ficamos do estágio intermediário de que nos fala John Cage, na anedota sobre o zen. Numa conferência, o doutor Suzuki havia dito que, antes de estudar zen, homens são homens e montanhas são montanhas; enquanto se estuda zen as coisas se tornam confusas: não se sabe exatamente o que é o que e qual é qual; depois de estudar zen, homens são homens e montanhas são montanhas. Após a conferência, a pergunta inevitável: “Doutor Suzuki, qual é a diferença entre homens são homens e montanhas são montanhas antes de estudar zen e homens são homens e montanhas são montanhas depois de estudar zen?”. A resposta: “A mesma coisa, só um pouco como se você tivesse os pés um tanto fora do chão.”

O conceito de norma e de correção lingüística não é claro nem entre os napoleônicos, os verdadeiros puristas da língua, que constantemente entram em conflito entre si, nem entre os andradinos, tão radicais quanto aqueles, fazendo parte deste grupo tanto os autores que praticaram no passado a chamada literatura regionalista, quanto os que praticam hoje a chamada literatura urbana e nos apresentam em seus livros a verdadeira fala do submundo. Anticorretista é como é chamado, por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova gramática do português contemporâneo, o que defende a idéia “de que o povo tem o poder criador e a soberania em matéria de linguagem”, e considera “elemento perturbador ou estéril a interferência da força conservadora ou repressiva dos setores cultos”.

Os dois autores também nos lembram que, para definir os dois exércitos, Adolf Noreen, lingüista sueco, criou os termos histórico-literário e histórico-natural. De acordo com o critério histórico-literário, a correção lingüística está no respeito aos exemplos a nós deixados pelos escritores do passado. Tal critério é o tradicional, fundado nos clássicos. O segundo critério, o histórico-natural, baseia-se na idéia de que a linguagem é organismo que se desenvolve melhor em estado de completa liberdade, sem empecilhos. Sendo assim, não pode haver em princípio nada correto ou incorreto na língua. Ambos os critérios, reconhece Noreen, são arbitrários e absurdos quando levados às últimas conseqüências. Haveria um caminho intermediário? Segundo o que se pode depreender dos depoimentos reproduzidos acima, a procura desse caminho é bobagem, pois o equilíbrio já está estabelecido; do que precisamos é zelar para que nenhum dos pratos da balança penda mais do que o outro. Ou, no modo de pensar de Ariano Suassuna: “Deixar o povo fazer a língua, e os escritores e os gramáticos de bom senso imprimir a ordem necessária, que a mantenha una”.

O que de fato devemos procurar com mais afinco está melhor expresso num clamor de Soljenitsyn: “O que é preciso é desenvolver um sentimento por nossa língua nativa, por nosso solo nativo, por nossa história”. É claro que afirmações como essa, quando pronunciadas no contexto errado, costumam soar demagógicas, rés-do-chão ou, pior, de esquerda (no pior sentido do termo). Sempre que isso acontecer, devemos remover a camada de imundície que estiver recobrindo essas palavras e tentar trazê-las de novo à vida. Somente assim um dia poderemos jactar-nos como João Cocteau: “Quando menino, eu pensava que só os brasileiros sabiam falar, enquanto os estrangeiros fingiam que sabiam.”

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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