Escritores e caubóis

O autor precisa pensar através da forma, da história, do ritmo, da palavra, da realidade ficcional
Julio Cortazar, autor de “O jogo da amarelinha”
01/05/2014

Literatura é arte em sua forma escrita e escritores são aqueles que a produzem, e que só existem através de suas obras. São as obras que definem “ser escritor”, não o contrário, e seu objeto é o mundo, ou sua percepção do mundo, ou o mundo interiorizado por ele que emerge modificado palavra a palavra. O objeto de acadêmicos na área de letras, e dos críticos, é a obra dos escritores. Literatura não é o objeto dos escritores, que pensam, ou deveriam pensar, o mundo. Um escritor que só bebe, vive e fala de literatura, em regra, tem um trabalho pobre, um clone, uma cópia. Mesmo que sua técnica seja apurada, e dia a dia a técnica está mais apurada, o que pode levar a grandes enganos. E aí a função do crítico, perceber e dizer. Pensar o mundo é também pensar de maneira original e única, moldada por vivências únicas, obsessões, ideias, frustrações, raivas, ressentimentos e sentimentos únicos. E pensar tem tudo a ver com literatura. Pensar, não brincar, nem se divertir ou fazer do texto um amontoado de sacadas inteligentes, tampouco torná-lo uma sessão de terapia. Pensar. Pensar através da forma, da história, do ritmo, da palavra, da realidade ficcional.

Quais suas influências literárias, a quem admira, o que conhece de nomes importantes é o que comumente se pergunta a escritores. A técnica do ofício é outro dos temas principais. Reflexões sobre literatura é o que acaba pautando suas falas. Talvez porque parte das pessoas que consomem essas palestras e entrevistas têm por interesse a literatura, não o mundo. A palavra escrita e a palavra oral têm mecanismos de existência diferentes, quase antagônicos. Na palavra oral é permitido, se é que não é quase obrigatório, o improviso. Na boa palavra escrita, não, nada é improviso. A reflexão dos escritores deve estar a serviço de sua produção literária, é de lá que deve ser extraída, não explicada, não por ele. Seja qual for o escritor, as respostas dadas em palestras são sempre parecidas porque as perguntas são as mesmas. Pergunta boa é aquela que só o autor pode responder, assim como livro bom é aquele que só o autor pôde escrever. Aliás, esse é um dos segredos de ensaios bons. E ensaio não é uma dissertação de escola nem um texto jornalístico. Ensaio é uma literatura não ficcional.

Economistas podem se tornar ótimos escritores, porque pensam o mundo, e por isso é bem mais interessante conversar com um economista sério do que com um escritor. Mas é muitíssimo mais interessante ler um grande escritor que conversar com um grande economista, ou um grande médico, ou um grande qualquer coisa. É uma conversa a três, você, você mesmo e o escritor em literatura. Em regra, economistas são bons pra analisar o que é dado, o que já foi, enquanto um grande escritor vai além. Em sua obra, define seu tempo, molda economistas, médicos, pessoas de gerações abaixo da sua. Deve ser por isso que escritores são retratados velhos.

Em 2011, a Grua, editora em que trabalho, lançou uma Temporada de originais para captar novos livros e bons autores. Fazia parte do regulamento uma breve biografia do autor. Um jovem que trabalhava numa espaço cultural comentou sobre isso “É bom, porque espanta os aventureiros”. O jovem não havia entendido nada. A arte é aventura. Uma aventura do espírito. A arte não tem dono. A arte sem aventureiros não é nada. Ele usava a palavra aventureiro como alguém sem currículo, alguém de fora — de fora do quê, da academia, do mercado editorial, do sindicato dos artistas, da “tchurma” de escritores e agitadores culturais, das redações dos cadernos culturais dos periódicos importantes? Então a literatura, ou outra arte, exige currículo para ser produzida em alto nível? Claro que não. E não sejamos ingênuos, claro também que isso tudo aí em cima funciona, e melhor do que deveria. Carreira literária não existe, existe uma sucessão de livros de um autor. Existe sua trajetória literária, que é diferente de carreira. Carreira é coisa de empresas e de repartições públicas, ou da burocracia das letras, traço cultural do corporativismo brasileiro, dos nossos maiores problemas estruturais, consolidado faz décadas na ditadura de Getúlio Vargas. E se a corporação é ótima para defesa de interesses, para a burocracia endêmica, para a sobrevivência porque paga o pão de cada dia, não faz bem à literatura — nem ao país, diga-se. Em tempo, a relação entre autor e editora é bem pessoal e deve ser duradoura, a formação de um autor é um investimento de longo prazo. Se houvesse uma incompatibilidade qualquer, ou uma antipatia à primeira vista — como por exemplo sinais de arrogância —, o livro não seria selecionado, por melhor que fosse. Mas não aconteceu isso.

Me vem à cabeça Casa tomada, conto que abre o livro Bestiário, do escritor argentino Julio Cortázar. Será que conseguiremos escapar?

O escritor é uma antena que fica isolada em cima da casa, ele está fora da engrenagem do motor e observa o mecanismo, ele é o fotógrafo invisível das festas de casamento. Ele é o caubói dos filmes, que passa pela cidade, dá um monte de tiros, vai embora solitário no cavalo que sacrificará quando adoecer. E depois de um tempo ninguém mais se lembrará dele, de seu nome, de seu rosto, mais sua ação terá modificado a cidade para sempre.

Bons filmes de caubói também são uma forma de arte.

Carlos Eduardo de Magalhaes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É autor de nove livros, dentre os quais Mera fotografia (1998), Os jacarés (2001), O primeiro inimigo (2005), Dora (2005) e Trova (2013). É editor da Grua Livros.

Rascunho