Na apresentação de uma coletânea de contos do gaúcho Fernando Mantelli, cujas histórias primam pela crueza e pela violência, que ele aborda sem meias palavras e sem facilitar nada ao leitor, a professora Léa Masina cunhou uma frase que desde então é um pensamento recorrente sempre que experimento aquele famoso soco na boca do estômago tão familiar de quem está acostumado aos livros: a literatura não é feita com amenidades. No entanto, poucas vezes esse conceito se aplicou com tanta propriedade a uma obra, desde o primeiro parágrafo até o ponto final, como se aplica ao romance Uma duas, estreia da jornalista Eliane Brum na ficção.
No premiado A vida que ninguém vê, uma série de reportagens produzidas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e que acabou virando livro, a jornalista vai à cata do que há de extraordinário em vidas aparentemente comuns e emociona o leitor com suas descobertas. Claro que o talento de ficcionista já se revelava nesse exercício. Como se sabe, não existe uma não-ficção literária pura; os fatos, por mais reais que sejam, vêm sempre filtrados pela ótica de quem os narra. O que contar e como contar são escolhas feitas a partir de um universo tão complexo quanto descolorido; o que transforma a vida em história é o olhar do narrador, portanto esse é um território onde realidade e ficção se imbricam e se confundem.
Na contracapa de Uma duas está anunciada sua proposta: “transformar em palavras a intrincada relação entre mãe e filha”. O tema não é novo na literatura e tem se prestado a diversas abordagens, ora iluminando o lado cômico, ora o trágico, muitas vezes o patológico, noutras, ainda, onde aparecem mescladas mais de uma ou mesmo todas essas possibilidades. A história aqui parte de uma situação tristemente banal nos dias de hoje: a mãe, Maria Lúcia, e a filha única, Laura, moram sozinhas cada qual em seu canto, apartadas por um abismo de ressentimentos antigos. Um dia, Laura é chamada às pressas por uma amiga de Maria Lúcia, que se compadece do estado deplorável em que ela se encontra, abandonada à própria sorte e quase moribunda na solidão de sua casa. A primeira e mal-humorada reação de Laura indica uma história já conhecida, mas que não deixa nunca de ser comovente: o caso do idoso que não reconhece a própria incapacidade e não aceita a assistência de quem por ele deveria zelar; aos olhos do mundo, porém, a culpa pelo abandono dos pais é quase sempre creditada aos filhos que, por desinteresse ou mera comodidade — julga de pronto quem não vive o problema —, falham no cumprimento de seu dever ancestral.
Todos sabemos que nunca é bem assim, por isso a empatia do leitor com a situação se estabelece de maneira instantânea: ele entende que não é caso de culpar Laura pelo abandono da mãe, mas sim de saber qual é a variante da vez da história. Entretanto, à medida que os detalhes vão sendo revelados, o quadro que aparece é tão chocante que o leitor muito provavelmente não conseguiria sozinho imaginá-lo. A situação pode até ser conhecida; as cores, contudo, causam um tal impacto, um mal estar semelhante àquele que assalta quem se vê diante de uma tela de Lucien Freud. “Um retrato expressionista”, na definição precisa que traz também a contracapa.
A cor tem uma inequívoca função no belo projeto gráfico assinado por Luciana Facchini. O preto não entra na composição do livro. Predomina o laranja, contrastante com o púrpura, o off-white do papel e alguns poucos detalhes em branco. A impressão é também em laranja, na tentativa de realizar graficamente a idéia de uma história escrita com sangue, mas fugindo ao apelo sensual do vermelho clássico, que seria também o mais óbvio. A escolha foi inteligente na medida em que produz uma certa leveza em oposição à aspereza da trama — e maliciosa, pois esse contraponto a faz ainda mais aterradora. Cenas de automutilação, masturbação com objetos inusitados, insinuação de incesto e lesbianismo são alguns dos muitos sustos que o leitor terá de enfrentar, disfarçados pela suave beleza do invólucro.
Desafio
Voltando à concepção original — transformar em palavras a intrincada relação mãe-filha —, temos aí o grande desafio, plenamente superado por Brum. A opção por um viés cômico, trágico ou patológico não passa a rigor de uma estratégia para tangenciar o principal: como abordar o visceral inerente a essa relação? Como dissecar as poderosas forças antagônicas que vivem a se digladiar nas entranhas de uma e de outra? E numa relação já deteriorada, quais forças vencem a batalha? A maior dificuldade, contudo, está em como usar a precisão das palavras para descrever um universo cuja grandeza e complexidade ainda não foram suficientemente decifradas por quem nele vive. Inescapável, mas sempre arriscado em situações como essa, é dar voz à emoção. O risco, como bem se pode imaginar, é cair no sentimentalismo, na pieguice, no lugar-comum, de tudo enfim que a boa literatura quer distância. A solução, essencialmente expressionista, foi carregar nas cores e nas formas para que a extrapolação conduza o leitor até onde a autora quer que ele chegue: um ponto aquém daquele para onde leva sua história. A intenção não é chocar, mas fazer com que o leitor “sinta” as mesmas emoções vividas pelas personagens.
São três os narradores: a filha e a mãe, ambas em primeira pessoa, além de um terceiro neutro, cada qual devidamente identificado por uma fonte de letra. A voz da filha conduz um exercício de metaficção. Laura, jornalista como a autora, está em processo de criação de um livro que conta a história de sua relação com a própria mãe, e padece, desde o primeiro capítulo, com os percalços que tal tarefa lhe impõe:
Começo a escrever este livro enquanto minha mãe tenta arrombar a porta com suas unhas de velha. Porque é realidade demais para a realidade. Eu preciso de uma chance. Eu quero uma chance. Ela também.
(…)
Não é assim que eu sonhava escrever. Os livros sempre foram a janela por onde eu escapava desta mãe que agora, enquanto escrevo com o sangue pingando, me espreita atrás da porta.
O narrador neutro corresponde ao do livro que está sendo escrito. Essa voz é muito parecida com a de Laura, a ponto de as duas muitas vezes se confundirem, fato que só reforça uma idéia: “Eu agora sou ficção. Como ficção eu posso existir”.
A terceira voz corresponde às memórias e reflexões que Maria Lúcia decide escrever para dar sua versão para aquilo que intui que Laura esteja escrevendo. Aqui o tom é um pouco mais sereno, embora não menos amargo; parte de alguém de uma geração passada que acaba de viver uma situação extrema e já tem uma visão sedimentada sobre o que ainda é muito confuso, pulsante e dolorido em Laura:
Não quero que vocês pensem que sou boa, porque não sou. Apenas estou velha. E muito, muito cansada. É estranho minha filha pensar que passei semanas me arrastando até a geladeira para comer até que nada mais houvesse lá porque queria lhe fazer mal. A ela.
Como se pode observar nos trechos acima transcritos, Brum tem um texto simples e bastante direto, mas que não abre mão da elegância. A preocupação estética não impede que a autora lance mão da escatologia e de expressões chulas quando isso se torna absolutamente necessário à verossimilhança. E uma das virtudes da obra é justamente conseguir manter um bom equilíbrio entre o vulgar decorrente de algumas situações e o bom gosto que se espera encontrar numa obra de arte.
A beleza da edição, a orquestração cuidadosa de tantos detalhes, a qualidade do texto não conseguem evitar que o leitor mergulhe de uma forma desconcertante na intimidade da relação entre as duas protagonistas, nem que ele se nauseie com a situação de degradação psicológica que elas vivem. Nem é esse o objetivo, muito pelo contrário. Se Eliane Brum queria de fato escrever com sangue, escolheu as palavras certas e produziu uma obra com envergadura suficiente para colocá-la junto aos melhores da literatura brasileira da atualidade.
3 Perguntas – Eliane Brum
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Meu primeiro contato foi por inveja. Eu fui uma filha temporona e na minha casa todo mundo já lia quando eu nasci. E todo mundo (pai, mãe e dois irmãos) lia muito. Desde muito pequena me lembro da sensação do vazio da vida, da aridez da vida. Quando fui mãe, aos 15 anos, a minha angústia não era a de como vou dar conta de criar uma filha sendo uma adolescente, mas a de como vou suportar testemunhar a angústia da minha filha sendo mãe. E era terrível ver minha filha olhando para o nada, sem que eu pudesse preencher esse vazio. Acho que as crianças sentem mais do que os adultos a aridez da vida, a falta de sentido. Pelo menos algumas delas. Então, na minha infância, minha interpretação era a de que as respostas para o vazio estavam nos livros, já que todo mundo lia o tempo todo. E, para mim, foi assim mesmo que aconteceu. Quando eu aprendi a ler, descobri que os livros não davam sentido para a vida, mas me permitiam viver outras vidas, mais interessantes que a minha, e, mais tarde, descobri que os livros eram habitados por seres que também se sentiam como eu, que também procuravam respostas e nem sempre encontravam. A literatura é isso na minha vida. A possibilidade de transformar a vida em palavra, mesmo sabendo que a vida mora além das palavras, que uma parte essencial da vida será para sempre indizível. Mas a literatura é essa busca pelo impossível que dá sentido à minha vida. E, portanto, a literatura é uma busca que só faz sentido na medida em que não faz sentido algum.
• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Não espero alcançar nada, apenas alargar a distância. Preciso buscar, não há outra coisa a fazer a não ser buscar a palavra que nunca será alcançada. E quanto mais escarafunchar, quanto mais fundo chegar no meu abismo, mais longe vou estar. É assim a busca literária: quanto mais perto, maior é a distância.
• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
Eu não escolhi. Apenas era esta a forma daquilo que precisei arrancar de mim. Sou repórter há 23 anos. Em certo momento, trabalhei com a questão da morte na reportagem. Não a morte violenta, que é o tema mais freqüente da imprensa, mas a morte que a maioria de nós terá, já que a maioria de nós não morre de bala perdida, acidente ou assassinato — mas de doença e de velhice. Este confronto com a morte me impôs a necessidade de uma outra voz, na medida em que percebi que há certas realidades que só a ficção suporta. Esta necessidade virou uma perturbação e depois uma insônia. Descobri então que o mais aterrorizante não é a possessão por entidades, demônios, alienígenas ou vírus, como na literatura e no cinema de terror. O mais aterrorizante é ser possuído por si mesmo. Me arrisquei a ser possuída por mim mesma — ou fui, mesmo sem ter certeza de que queria ser ou de que agüentaria ser — e escrevi um romance. O que é um romance para mim? Um humano que sai de dentro da gente — e que nos aterroriza porque não podemos chamá-lo de monstro. Se tiver a nossa carne, vai assombrar o mundo com sua humanidade.