“Sou o que sou porque meu cachorrinho me reconhece” — assim começa Gertrude Stein a sua composição Identidade, um poema, de O que são obras-primas. Escrito em cenas e atos, ou seja, como dramaturgia, o texto sobre identidade tem como ponto de partida a alusão a um texto fundamental da civilização ocidental, a Odisseia de Homero. Retornando à casa disfarçado depois de vinte anos longe de Ítaca, também Odisseu é reconhecido pelo seu “cachorrinho” Argos, assim como a voz que fala no texto de Stein.
Em Homero, Odisseu é, também, o herói da identidade. Suas ações astuciosas para vencer as forças míticas e naturais muitas vezes são acompanhadas da mesma estratégia: a encenação da dissolução da própria identidade, apenas para ressurgir como si mesmo com maior força no final do embate.
Como no encontro com o ciclope Polifemo. O herói, aprisionado pelo monstro, oferece vinho ao seu algoz, que pergunta então quem lhe oferecia a bebida. Odisseu responde que seu nome é “Ninguém”. Altera assim a sua identidade, ameaça desaparecer logo na hora de sua morte. Quando o ciclope se embriaga, o herói espeta seu único olho. Polifemo grita de dor, e outros ciclopes logo aparecem perguntando quem o havia ferido. Polifemo afirma que Ninguém o havia ferido. Os ciclopes entendem que ninguém ferira Polifemo, e enquanto se confundem com esse jogo de palavras, Odisseu escapa com seus companheiros, sem maiores ameaças. Antes de deixar a terra dos ciclopes, no entanto, o herói ainda grita para os monstros o seu verdadeiro nome, recuperando e reafirmando o seu eu original. Permanece idêntico a si mesmo, permanece o herói da astúcia, permanece Odisseu.
Em Identidade, um poema, Gertrude Stein se coloca no avesso dessa lógica. Na Cena II, retoma a frase com que abre o seu texto dando-lhe um acréscimo significativo.
Eu sou eu porque meu cachorrinho me reconhece mesmo que fosse um grande e até um pequeno cachorro me reconhecendo de fato não me faz ser eu não realmente porque afinal de contas ser eu o que sou não me faz ter nada a ver com o pequeno cachorro me reconhecendo, ele é minha plateia, mas uma plateia nunca vai lhe provar que você é você.
Enquanto, no texto de Homero, Odisseu tem como recurso a encenação da dissolução de sua identidade para se reafirmar, em Gertrude Stein as identidades são apenas um recurso para apresentar a sua instabilidade, a sua dissolução completa diante de uma plateia que nunca poderá “provar que você é você”.
Para a autora de A autobiografia de todo mundo, não há nada mais avesso à criação do que a insistência na identidade. Um texto não pode, para Stein, reafirmar a aparição narcísica de quem o escreve. E, no entanto, a solução encontrada pela escritora não é o abandono do eu, mas a sua transformação em função.
O que são obras-primas? é uma radiografia do método Gertrude Stein: o reforço à identidade e à repetição como procedimentos artísticos da escritora opera em sua obra para, paradoxalmente, desestabilizar o self e visibilizar a diferença naquilo que aparece como o sempre-igual.
Modos de ver e modos de fazer
Em Filosofia da composição, Edgar Allan Poe recomenda aos escritores que procurem as palavras e a forma composicional mais adequadas para a promoção do efeito que procuram causar. Explica o poeta que com seu poema O corvo, por exemplo, queria produzir em seu leitor a extrema melancolia (o ponto alto da Beleza, no seu julgamento) — e para isso, a repetição da palavra nevermore (nunca mais) ao longo de toda a composição, dita sempre pela boca de um corvo para um rapaz que perdera a amada, parecia procedimento adequado.
Um ponto de vista metafísico para a criação. Em Composição como explanação, de Stein, o problema da criação aparece colocado a partir de outro lugar, considerado, desde o seu início, diante de uma teoria da história.
O que é a história para Gertrude Stein? Antes de mais nada, é preciso colocar que para a escritora nada de verdadeiramente novo acontece ao longo dos tempos. Todas as coisas se repetem, inclusive as coisas que os seres humanos fazem. O mundo é concebido como sempre-igual vivido e visto pelos seres humanos de todas as épocas — pelas gerações. O que diferencia as gerações não são, portanto, características inerentes e essenciais, nem os seus bens culturais. Antes, o modo como cada geração vê as coisas.
A teoria da história em Stein é uma teoria estética — uma teoria da visão. “A única coisa que é diferente de uma época para a outra é o que é visto”, nos diz a escritora. Mas o que faz com que cada geração veja as coisas de modo distinto em cada época, visibilizando e invisibilizando distintos objetos e traços do mundo no decorrer do tempo?
Cada geração vê coisas diferentes porque faz as mesmas coisas (come, dorme, se reproduz, morre) diferentemente. Repetição e diferença dos hábitos estruturam assim a diferença na visão. E sabemos como cada geração ou povo vê o mundo (e portanto, o que faz, e, por extensão, vemos a materialização de sua história) em suas composições, em seu modo de composição. O modo de compor se liga, irremediavelmente, ao ethos de quem compõe.
Afirma Stein que “o que é visto depende sobretudo de como as pessoas estão realizando todas as coisas” — e ainda, “a composição é a diferença que torna cada um e todos distintos de outras gerações”. A literatura, e a arte em geral, desse ponto de vista, torna-se o lugar privilegiado da investigação histórica e da visibilização da diferença (inclusive ética) entre os povos.
Por isso também Gertrude Stein afirma, em Experiência e criação: “escrevo com meus olhos e não com meus ouvidos ou minha boca”. No mesmo ensaio, a escritora confessa ainda que aprendeu a sua arte não apenas com o realismo de Flaubert, como com as pinturas de Cézanne e Picasso (de quem foi amiga). Para Stein, a escrita se faz pelos olhos — mas não porque se desligue de suas práticas orais, como poderia supor uma leitura apressada do trecho, mas porque o que se compõe em uma obra, para a escritora, vem sobretudo daquilo que é dado a ver a cada pessoa em sua diferença.
Olhos, ouvidos e boca não correspondem, aqui, aos órgãos e à sua eficiência, mas a pontos de vista da criação. É como se Stein nos explicasse que, do ponto de vista da composição, não há expressão. Não “fala”, na obra, quem a escreve, nem “fala”, na obra, outras pessoas “escutadas” por quem escreve. A obra é um transplante de olhos: dá a ver de modo único aquilo que unicamente vê quem escreve.
Vida-obra
O volume O que são obras-primas? é difícil de ser lido — mas não de ser visto. O leitor encontrará aí a resistência de uma imagem, e não de um texto. A questão do estilo em Stein é antes uma questão da visibilidade. Não se produz aí um lugar de fala, mas um facho de luz. Os nove textos que integram a obra —entre poemas, palestras e ensaios — constituem uma importante contribuição para a visão de Stein no Brasil. Num duplo sentido: a visibilidade do método de sua obra, como também a visibilidade de Stein ela mesma. Não tanto porque os textos aludam (e aludem) a episódios biográficos da autora, mas porque iluminam o seu ethos. Constituem assim a categoria de textos de vida-obra.
Nesse sentido, Composição como explanação, Identidade, um poema, O que são obras-primas e por que há tão poucas? e Experiência e criação fundamentam uma poética; mas podem ser lidos como discurso autobiográficos se postos lado a lado com Uma americana e a França, que, por sua vez, pode ser lido como uma poética em uma tal colocação. Aí, podemos ler Stein dizer:
a América é minha terra e Paris é minha casa […] sou americana e vivi metade de minha vida em Paris, não a metade de minha formação mas aquela em que criei o que criei. […] Eis por que Paris é minha cidade natal, pois afinal de contas ela é justamente o que é, minha terra.
Ser parisiense ou americana, na imagem que Stein nos apresenta, não coincide com um lugar de nascimento, mas com um lugar de formação do olhar — ou antes, daquilo que antecede o olhar, daquilo que constitui a luz que se projeta nas coisas e reflete para a íris.