As obras dos antigos chegam à modernidade fragmentadas; as obras modernas já nascem como fragmentos. Essa ideia romântica, proposta por Friedrich Schlegel no final do século 18, na revista Athenaeum, tem um tremendo alcance que se estende até o nosso tempo. E toca com a ponta dos dedos obras que, ao nascer, já se parecem com ruínas. Como a poesia de Mar Becker.
ser toda escombro e canção
Esse verso paira sozinho numa página de Noite devorada, seu mais recente livro de poemas. Sem título e sozinho, esse verso é como o braço de uma estátua — não sabemos nada sobre o todo, conhecemos apenas uma pequena parte que tem a força de uma metonímia, mas que não consegue representar o todo. Intuímos, mas não o temos.
O efeito é semelhante ao de se contemplar um fragmento de Safo: estamos necessariamente diante de uma perda. Perdemos a música de Safo, embora ainda tenhamos um vestígio da canção nos papiros que foram preservados de quem quer que tenha copiado esses poemas nas folhas que se desmancham com o tempo.
Em Noite devorada Becker continua o trabalho que começou no seu primeiro livro, A mulher submersa: a poeta tenta produzir um canto que é, paradoxalmente, apenas um vestígio de si mesmo. Mas como fazer isso através da linguagem? Como fazer silêncio enquanto se diz alguma coisa? Como mostrar a ruína enquanto se ergue uma obra? Essas perguntas orientam as decisões estéticas de Mar Becker e desorientam a sua recepção. Afinal, o que Mar Becker está fazendo?
Quando não sei responder a perguntas como essas, gosto de continuar a conversa contando uma história. Vocês conhecem a história das sereias na Odisseia. Elas ficam nas rochas em alto mar e, quando as embarcações se aproximam, elas seduzem os marinheiros com seus cantos, atraindo-os para o naufrágio e para a devoração. Só que já no século 20, Franz Kafka criou uma versão surpreendente dessa história. Ele imaginou que o silêncio das sereias era ainda mais poderoso que o seu canto. A recusa do canto é mais mortal do que o canto. Então, quando Odisseu bolou o seu estratagema para passar com sua embarcação pelas sereias e (na versão de Kafka) tampou os seus ouvidos com cera, ele somente teria sobrevivido porque não escutara que as sereias não cantavam. Que elas faziam silêncio. Elas estavam com as bocas entreabertas e, como ele imaginou que elas emitiam algum som e que a cera o protegia, não ouviu nada.
Porque ouvir o silêncio é diferente de ouvir nada. Assim como fazer silêncio com a linguagem é diferente de não fazer nada. Talvez seja por saber disso que Mar Becker tenha tomado o amor e o desejo como fundamentos de sua escrita. Continuando um trabalho que vemos na poesia de Hilda Hilst e na prosa de Clarice Lispector, Becker liga o tema amoroso ao tema existencial. Pois o amor demanda palavras para ser todo, mas nenhuma palavra está à altura do amor:
aproxima-te do amor sem muitas perguntas
aprende-o impensado. intocado ainda
sem perguntas aproxima-te como descobrindo no
tempo um tempo sem
palavras
com medo de que
se chamado, o amor
(esse pássaro)
se assuste
O poema lembra a recomendação drummondiana: “Penetra surdamente no reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos.” Mas no caso de Drummond, o pássaro só e mudo está sem desespero, “há calma e frescura na superfície intata”, “em estado de dicionário”. No caso da autora, o pássaro pode voar a qualquer momento.
Intensidade
É curioso que o pássaro esteja aqui entre parênteses. Colocá-lo entre parênteses, de certo modo, é tratar a palavra pássaro com delicadeza na esperança de que ela não fuja. Mas é também preservar a sua poética de um excesso de elementos. Ao escolher dizer menos, a poeta ganha mais força: quanto menores os seus poemas, mais intensos se provam, e mais precisos na tarefa de dizer o que precisam dizer.
O mundo de Mar Becker é mínimo. Tem algumas agulhas. Um cavalo. Um único oceano, feroz. Uma embarcação. Algumas mulheres. Alguém sem rosto. Esse pássaro entre parênteses. O seu próprio corpo é frágil. O vento é um sopro. Tudo é delicado. Ao fazer um mundo com matéria mínima, ela enche esse mundo de treva, negatividade, escuridão, ruína. “também a delicadeza devora, a seu modo”, ela dirá. Nem mesmo a noite é tão escura quanto essa outra treva mais escura ainda. A noite foi devorada pela treva.
É contra esse pano de fundo (talvez a representação de um mundo palavroso de quem assusta o amor ou o poema) que as mínimas coisas de seus poemas emitem um brilho. Se tivéssemos que falar de seu trabalho em termos de pintura, poderíamos dizer que a sua técnica é a do chiaroscuro.
Mas ela não pinta (embora escreva projetando imagens), porque a sua questão é antes com a linguagem que com a imagem. Assim como o seu mundo é mínimo porque não lhe interessa exatamente a materialidade desse mundo, mas o que acontece com a matéria no tempo. Como fazer com as palavras o que o tempo faz com a matéria? Uma resposta provisória da autora está em outro fragmento, dois versos solitários na página:
escrever é negociar com a língua um
modo mais feroz de calar
Se o amor ajuda a poeta em sua tarefa de lidar com o paradoxo do silêncio da palavra na poesia, o que a ajuda com a ferocidade é a imagem do mar. Essa imagem (mais do que a palavra mar) corrói a sua língua: “é o mar que ensina a perder”, dirá Mar Becker em um poema que parece atualizar um velho tema de Sophia de Mello Breyner Andresen e um poema sobre a perda de Elizabeth Bishop (“A arte de perder não é nenhum mistério”). O mar “ensina a ouvir palavras como/ quebrassem umas sobre/ as outras”.
(O mar que corrói toda matéria com o sal, com a maresia ou, como diria João Cabral de Melo Neto, o mar que “está sempre/ com seus dentes e seu sabão/ roendo suas praias”, “o mar e seus ácidos”, “o mar e sua boca de ácidos”.)
De volta a Mar Becker, o mar ensina:
a esquecer enfim —
é o mar que ensina a ir
e a brilhar no escuro como brilham navios cargueiros
e corpos amando
Que mais se pode dizer a propósito de Noite devorada? Em comparação com os outros livros publicados pela poeta, talvez aqui seja o lugar em que a fragilidade de seu próprio corpo é mais bem enunciada, e seu papel na elaboração dessa poética mais nítido. É sob o signo da derrota e da fraqueza que surge a sua poesia e sua procura mais obstinada: a possibilidade de amar. Uma possibilidade que a crítica poderia ficar tentada a chamar de vitoriosa sobre esse fracasso inicial, mas que eu insisto em chamar de fracasso. Pois o amor não é garantia para a escritora, ela não o conquista. É conquistada por ele. Ela não diz: sou frágil e por isso posso amar. É o amor que a torna frágil e com isso ameaça a poeta, a sua poesia e a si mesma.
o amor fez frágeis demais minhas
palavras
e eu agora temo feri-las de morte sussurrando-as
Todo instante é um instante de perda paradoxal. Mar Becker perde muito — mas tem alguma coisa. O que ela tem? É nesse ponto de interrogação que se situa a sua escrita da fragilidade. Não digo que seus poemas sejam sobre a fragilidade — seria mais preciso dizer que a fragilidade é quem escreve os seus melhores poemas. E são essas palavras vulneráveis que ela oferece novamente ao público. Nisso reside o seu frescor. Agora, cabe-nos esperar que a poeta escape do perigo da redenção, e que não tome nunca a fragilidade como força. Para vingar, a fragilidade precisa permanecer frágil, sem artifícios. Até aqui, ela está vingando.