Dezenas de títulos novos são lançados semanalmente no país. Duas visitas, em um intervalo de poucos dias, revelam livrarias distintas, ainda que o endereço permaneça o mesmo. Já são outras as pilhas que disputam a atenção dos clientes em potencial. Capas com cores fortes ou metálicas, providas de closes fotográficos misteriosos e purpurina em profusão. Muitas delas estampam a indicação de que seus respectivos livros perduraram por muitas semanas na lista de mais vendidos de um jornal estadunidense ou de que eles deram origem a um fenômeno de bilheteria nos cinemas.
O passeio pela livraria é uma constante em minhas resenhas — o parágrafo anterior, aliás, foi retirado da primeira contribuição que dei para o Rascunho. A reflexão é antiga, mas questões tais sobre como escolhemos o que comprar e qual será nossa próxima leitura ainda me intrigam: como esse livro chegou à minha escrivaninha? O quanto vou conseguir dialogar com ele? E (logo depois de um novo título ser adicionado à seção) como eu poderia ter adivinhado que logo esse seria bom assim?
Para que eu descobrisse A terra inteira e o céu infinito, de Ruth Ozeki, não houve muito mistério: um amigo o leu em inglês e me indicou; ele ficara sabendo mais a respeito do título durante o Tournament of Books, prêmio literário que, ao lado do Pulitzer, costuma ser dado a obras que têm grandes chances de se tornarem minhas favoritas (não, ele não desconhecia esse fato). Quando foi lançado em português, reconheci o romance apenas pelo nome da autora, mas já sabia que o leria eventualmente. Explico: se uma tradução mais literal do título seria algo como “Um conto para o ser-tempo”, encontrei logo na epígrafe da Parte 1 a razão do título brasileiro: o último verso do poema de Dōgen Zenji é “Para o ser-tempo, a terra inteira e o céu infinito”.
Para Ruth, uma escritora que é também uma das protagonistas do romance — aquela cujos capítulos são narrados em terceira pessoa —, a escolha da leitura não é tão simples, no entanto. A narrativa lida por ela não foi indicada por um amigo ou escolhida por acaso — se é que isso existe — em uma livraria. Ela lê um diário, escrito por uma adolescente japonesa em um caderno com capa de uma edição francesa de Em busca do tempo perdido, encontrado dentro de diversas camadas de plástico na beira da praia da isolada ilha canadense em que Ruth vive.
E que começa assim:
Oi!
Meu nome é Nao e eu sou um ser-tempo. Você sabe o que é um ser-tempo? Bem, se você me der um minutinho, eu explico.
Um ser-tempo é alguém que existe no tempo, e isso quer dizer você, e eu, e todos nós que estamos aqui, ou já estivemos, ou que um dia estarão. Quanto a mim, estou neste exato instante sentada em um café onde as garçonetes usam uniformes de empregada doméstica, em Akiba, a Cidade Elétrica, escutando uma canção melancólica que toca em algum ponto do seu passado, que também é o meu presente, escrevendo isto e me perguntando sobre você, em algum momento do meu futuro. E se você está lendo isto, talvez também esteja se perguntando sobre mim.
Você se pergunta sobre mim.
Eu me pergunto sobre você.
Quem é você e o que está fazendo?
Você está em um vagão do metrô de Nova York, se segurando numa correia, ou está de molho na sua banheira de hidromassagem em Sunnyvale?
Está se bronzeando em uma praia arenosa em Phuket ou está fazendo as unhas dos pés em Abu Dhabi?
Você é homem ou mulher ou está no meio-termo?
Sua namorada está preparando um jantar gostoso para você ou você vai comer macarrão chinês direto da caixa?
Você está encolhido, de costas viradas para a sua esposa roncadora, ou espera com ansiedade que seu lindo amante termine o banho para fazer amor apaixonado com ele?
Você tem um gato e ele está sentado no seu colo? A cabeça dele cheira a cedro e ar doce e fresco?
Na verdade, não tem muita importância porque, quando você ler isto, tudo estará diferente, e você não estará em nenhum lugar específico, folheando à toa as páginas deste livro, que por acaso é o diário dos meus últimos dias na Terra, se perguntando se você deve continuar a leitura.
E se você resolver não ler mais, ei, problema nenhum, porque não era você que eu esperava, de qualquer forma. Mas se decidir levar a leitura adiante, então imagina só? Você é meu tipo de ser-tempo e juntos vamos criar mágica!
Fluidez
O trecho inicial já revela muito sobre o que veremos nas páginas seguintes. Há a indagação sobre o ficcional — Ruth passa boa parte do livro pesquisando a respeito da existência física de Nao. Vê-se o jogo com o tempo que há no fazer literário: nos preparamos para uma espécie de diário, escrito não no calor do momento, mas muito depois — assim como é lido muito depois por Ruth, assim como nós lemos muito depois. Há um diálogo: Nao fala com um ser-tempo que não conhece (e que poderia nunca existir, se o caderno não fosse encontrado), mas há momentos em que claramente parece dialogar com Ruth (e, por que não?, conosco, caso Ruth se revele não ser o tipo de ser-tempo da garota). E é meio difícil não fazer uma ligação entre o “criar mágica” de Ozeki com o que fez Michael Ende em A história sem fim, em sua alternância entre uma narrativa fascinante e a descrição da experiência de leitura do personagem que está diante de tal narrativa.
O trecho revela muito mais sobre a experiência da leitura do que a respeito do enredo, todavia. Ozeki não se esquece dos demais personagens: Ruth e Nao são protagonistas, mas têm ao seu redor personagens igualmente complexos — alguns deles com crescente grau de importância e destaque, como a avó monja de Nao, com a qual a guria interage durante sua escrita por meio de SMS. Temas como bullying, guerra, suicídio, desemprego, respeito aos animais, mudanças climáticas se acumulam de maneira fluida (ainda que inesperada, num primeiro momento). Aliás, tamanha fluidez se deve não apenas à escrita, mas também à estrutura mais livre, menos matemático-joyceana, por meio da qual o romance é construído — muito semelhante ao leitor que faz digressões e pausas e que percebe, aos poucos, as transformações internas causadas por um livro especial.
Perceber é diferente de saber expressar. E por isso talvez não tenha conseguido expressar adequadamente o quanto esse livro é bom. Então espero que, numa ida à livraria, você (1) já tenha se esquecido da resenha, (2) esbarre nesse livro, (3) leve-o para casa, (4) leia-o e (5) confira por si mesmo a gostosura que é A terra inteira e o céu infinito.