Um dicionário, que também é um livro, define o objeto livro da seguinte maneira:
1. coleção de folhas de papel, impressas ou não, reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente.
2. obra de cunho literário, artístico, científico etc. que constitui um volume.
Definições que enquadram bem uma das facetas dessa criação fascinante, mas que não a encerra em seu alcance simbólico, psicológico e metafísico. É que os livros não são simples objetos. Digo isso com a maior das convicções, sem medo de equívocos.
Com eles, estão juntas certa magia, certa aura que ultrapassa os limites da mera utilidade. São cápsulas do tempo, locomotivas de memórias e afetos, vias expressas de histórias e válvulas de escapes para vozes que conseguem extrair o múltiplo do uno. Não é à toa que sua existência há muito hipnotiza e fascina as mentes mais brilhantes que já habitaram o planeta.
Jorge Luis Borges foi um defensor incansável da força quase transcendental do livro. No conto A biblioteca de Babel, escrito em 1944 e presente em seu indispensável Ficções, Borges descreve o universo como uma biblioteca que recorta tempo, espaço e dimensões, composta de “um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas”, com vista de todos os andares, superiores e inferiores, de qualquer um dos hexágonos, “interminavelmente”. Um verdadeiro repositório não apenas de respostas, mas de perguntas que levam a outras possibilidades. Nela também estaria guardado um livro que ninguém jamais conseguiu encontrar, mas que muitos procuram: um livro cíclico chamado Deus.
Umberto Eco também dividia com Borges o fascínio por toda a transformação que um objeto de aparência tão simples pode proporcionar. Colecionador assíduo e inveterado, Eco mantinha duas bibliotecas com dezenas de milhares de exemplares. Se ele teve tempo para ler tudo? É evidente que não. Ao longo da vida ele montou uma antibiblioteca, termo criado por Nassim Nicholas Taleb e que diz respeito aos livros não-lidos de uma biblioteca pessoal, mas que estão ali, sempre disponíveis, seja para uma pesquisa ou para um rápido golpe de olho vez ou outra. “Livros lidos são muito menos valiosos que os não-lidos”, ensina Taleb. “Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não-lidos.”
Seja composta de livros lidos ou não lidos, a biblioteca tem encantos que envolvem como tentáculos os bibliófilos de todos os níveis e classes. A ideia de catalogar e organizar um grande volume desses objetos quase mágicos desperta um sentimento difícil de explicar no espírito humano. Talvez seja por conta da nossa necessidade intrínseca por ordem e por refletir sobre nossos atos e conquistas. Seja como for, a biblioteca, principalmente a biblioteca pessoal, não se prende à definição de um espaço onde se pode amontoar conhecimento; elas também podem ser vistas como mapas que ajudam a percorrer a paisagem mental de seus donos: seus gostos, interesses e, por vezes, seus segredos mais íntimos.
Um homem dos livros
Dono de uma erudição invejável, o italiano Roberto Calasso foi autor de obras de grande repercussão, como O ardor, a literatura e os deuses e As núpcias de Cadmo e harmonia. No entanto, foi como editor da Adelphi, da qual assumiu o cargo de presidente em 1999, que ele se projetou com maior repercussão no círculos literários. À frente da editora, Calasso participava ativamente nas diversas fases de cada uma das publicações: desde a concepção estética, até a escolha dos materiais utilizados na impressão — com destaque para a edição crítica de Friedrich Nietzsche, que serviu como guia para as publicações posteriores.
A primorosa dedicação de Calasso resultou em um sucesso retumbante, sustentado pelo talento do editor na escolha acertadas dos títulos a serem publicados, fruto da sua extensa habilidade como leitor e da capacidade única de interpretar o conteúdo dos textos que avaliava, sempre em consonância com os principais acontecimentos de sua época e com o contexto que cercava os leitores. Era assim, usando dos seus dons de leitor e intérprete, que ele acabava por encontrar o que chamava de “livros únicos”, aqueles em que “imediatamente se reconhece que acontece alguma coisa ao autor e essa coisa terminou por se depositar em um escrito”.
Por estar em contato constante com o universo livresco, é natural que Calasso também tenha se interessado pelas bibliotecas e pelo modo como cada pessoa decide organizá-la. Como organizar uma biblioteca, seu derradeiro livro publicado, traz quatro ensaios que orbitam a temática do livro de maneiras distintas. Dentre eles, apenas o primeiro é realmente focado no tema proposto no título; os demais versam sobre a era de ouro das revistas literárias, a primeira resenha literária da história, e sobre como organizar uma livraria e suas práticas comerciais. Como é possível imaginar, o fio condutor entre os ensaios é o livro, mas o primeiro tem um brilho especial — não à toa dá título à coletânea.
Logo nas primeiras páginas é possível ter uma ideia da força intelectual do autor, que esbanja erudição, sem nunca soar brega ou pedante:
Como organizar uma biblioteca é um tema altamente metafísico. Sempre me admirou o fato de Kant não ter dedicado a esse tema um pequeno tratado.
Entre nomes de colecionadores, autores e pesquisadores, uns obscuros, outros nem tanto, Calasso desfila seu conhecimento sobre a história do seu objeto de pesquisa, costurando épocas, gostos e ideias. Também fala com igual propriedade sobre o papel do leitor e o hábito da leitura, que em tempos tão rápidos quantos os atuais, parecem estar à beira da extinção:
Todo verdadeiro leitor segue um fio (não importa que sejam cem ou um único fio). Toda vez que abre um livro, retoma nas mãos aquele fio e o complica, enrola, desenrola, dá nós, alonga… O enovelar-se das leituras no mesmo cérebro é uma versão impalpável daquelas redes neurais que deixam os cientistas desesperados.
No final das contas, Como organizar uma biblioteca corre o risco de ser definido como apenas mais um livro sobre um objeto que muitos acreditam estar obsoleto, que em breve irá sucumbir sob o peso das novas tecnologias. Contudo, são justamente livros como estes que fazem frente a essa falácia e que dão prova da força quase hipnótica que eles continuam a exercer nos nossos espíritos. Existem livros ruins? É claro, aos borbotões e cada vez mais, eu diria. Mas o livro enquanto ideia e objeto está longe de se tornar obsoleto. Enquanto existirem leitores, existirão livros. E enquanto existirem livros, existirão bibliotecas, públicas ou pessoais, que continuarão a guardar a essência quase transcendente desse objeto entre as suas prateleiras.