Erudição e pretensão

Resenha do livro "Verdades e mentiras na literatura", de Stephen Vizinczey
Stephen Vizinczey, autor de “Verdades e mentiras na literatura”
01/11/2013

Um livro de leitor. De leitor exigente — lado A.

Um livro de professor. De mestre em radicalismos — lado B.

Verdades e mentiras na literatura se justifica graças a seu lado A. Recomenda-se leitura de olhos bem abertos. Partículas maniqueístas pululam ao longo da obra.

É preciso estar atento e forte, aconselhou Gilberto Gil em Divino maravilhoso. Mais adiante, alerta: tudo é perigoso.

O autor, Stephen Vizinczey, é húngaro. Nasceu em 1933. Jovem, escreveu peças teatrais. Elas costumavam ser proibidas pelo regime comunista, o que não impediu A última palavra, sua segunda peça, de receber o prêmio Attila József. Diz o autor que, certa vez, enquanto ensaiavam, receberam a visita da polícia política. Esta, não satisfeita com a “confraternização”, levou algumas lembranças: para ser exato, carregou os cenários, os figurinos. Vizinczey não tardaria a fugir para o Ocidente.

No Canadá, sem saber falar inglês, viu-se obrigado a aprender. E aprendeu tão bem — a luta pela sobrevivência é o melhor dos métodos — que logo a sobrevivência resultava dos argumentos que escrevia para filmes. Não tardaria a escrever romances, ensaios, resenhas.

Mandamentos constrangedores
Verdades e mentiras na literatura reúne textos anteriormente publicados em jornais e revistas. Trata-se de uma coletânea que merece redobrada atenção. Apresenta uma face bobinha, aparentemente ingênua, porém perigosa, e uma face arrogante, pretensiosa, extremamente bem articulada — mas, como diz um amigo, “as serpentes também são muito bem articuladas”. Recomenda este aprendiz: aprecie com moderação, não se deixe impressionar.

Comecemos pelo lado B, Os dez mandamentos de um escritor. não fosse a grandiosidade do lado A, estas dez bobagens arrogantes jogariam o livro no esgoto. Vale a leitura pelo lado cômico, ingênuo, piegas — encare como uma negação do primeiro mandamento: “não beberás, não fumarás nem usarás drogas”.

Dito desse modo, sem dar exemplos, corro o risco de parecer sob o efeito de duas das mais potentes drogas, inveja e arrogância. Enganou-se deploravelmente, impaciente leitor, caso tenha sentido falta da mediocridade. Esta não é droga, é componente de minha essência.

O primeiro mandamento é constrangedor, conhecemos inúmeros bons escritores que fumam, muitos que bebem e outros que se drogam. Por vezes ocorrem num mesmo sujeito. Não fazer uso dessas três “ferramentas” não significa ser bom escritor.

Segundo mandamento: “não terás hábitos dispendiosos”. Alguém pode explicar o que isso tem a ver com escrever bem ou mal? Diz Vizinczey: “É preciso decidir sobre o que é mais importante para você: viver bem ou escrever bem”. Essa afirmação é de uma estupidez constrangedora. Aproveito para dar um aviso aos editores: desprezem todo original não oriundo de regiões miseráveis. Dia desses fiquei sabendo que Madagascar é o lugar mais pobre do nosso globo. Pelo visto deve estar repleto de grandes escritores.

Perdoe, caro leitor de espírito elevado, mas a irritação se aproxima, em vista disso não tomarei seu tempo com todos os mandamentos, mas… no quarto mandamento você encontrará “Não serás vaidoso”, no quinto o autor lhe recomendará “Não serás modesto”.

Menos mal que são dez mandamentos, dez patéticos mandamentos. Condição para levá-los a sério: ter no máximo dez anos de idade e ostentar analfabetismo no mais alto grau de convicção.

Pretensão demais
Ultrapassada a rebentação, o leitor encontrará a erudição inquieta de Vizinczey, então se perguntará como ele foi capaz cometer aqueles dez mandamentos imbecis.

Aproveito para fazer uma pergunta, atento leitor: por que raios escritores gostam tanto, ou pelo menos se arvoram nesse direito, de ensinar a escrever? Nem artistas plásticos apreciam tanto essa atividade. Com a quase erradicação dos cursos de corte e costura, o terreno foi invadido pelos escritores/professores.

Percebe-se nitidamente sua admiração por Stendhal, admiração que permite leve consideração a Balzac e quase esquecimento de Flaubert. Vizinczey parece não conseguir desapegar da pieguice, perceba, apesar da devoção por Stendhal. Voilà: Stendhal é um desses raros espíritos que nunca param de desejar estar vivos, apaixonados, livres. Estes três desejos dominam suas obras.

Vale lembrar que a leitura de Verdades e mentiras na literatura deve ser efetuada com extremo cuidado e sempre de forma criteriosa. Percebe-se a indisfarçável pretensão do autor em assumir a “persona” de bússola a orientar não apenas o aspirante a escritor, mas também ditar normas acerca de como se deve receber a literatura. Caberá a você, criterioso leitor, aceitá-las. Caso aceite incondicionalmente, saiba que está a permitir que alguém lhe informe o que vem a ser bom gosto em literatura. Pelo menos na literatura européia e americana. Parte da literatura européia e americana. Parte escolhida pelo autor. O que enseja miríades de controvérsias.

Cabe lembrar a você, que também lê no idioma de Rabelais, a leitura de Des mystifications littéraires, de Jacques Finné. Compare e depois conversaremos.

Para encerrar, Verdades e mentiras na literatura é o retrato da intransigência de Vizinczey: se desmistifica determinados aspectos da literatura, também demonstra sua agressividade, sua inteligência e seu idealismo piegas.

Trata-se de um livro pretensioso, arrogante, aparentemente sincero, feito este texto que você acaba de ler. Não deve ser levado muito a sério.

Verdades e mentiras na literatura
Stephen Vizinczey
Trad.: Marcos Bagno
Autores Associados
512 págs.
Stephen Vizinczey
Nasceu na Hungria, em 1933. É autor de diversos livros, entre eles In praise of older women, editado em 21 países e ganhador, em 2004, do Prêmio Elba, na Itália.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho