Posta-restante, publicado originalmente em 2001, é o livro de estreia da chilena Cynthia Rimsky e o primeiro da autora traduzido no Brasil. O título alude ao serviço dos correios em que ficam armazenadas correspondências de pessoas sem residência fixa e traduz o espírito errante de uma obra caracterizada pelo vagar pelo mundo em busca de um objetivo que se esvai.
O ponto de partida da narrativa é um mercado de pulgas em Santiago do Chile, no qual a protagonista encontra um antigo álbum de fotografias com imagens de uma família em férias. Ali está escrito Rimski e seu sobrenome é Rimsky. Haveria alguma relação entre ela e aquelas pessoas do álbum? Este é o gatilho que a fará empreender uma viagem em busca de sua história familiar, pois no encontro com o álbum experimenta “a emoção do viajante quando escolhe um caminho que o levará a um lugar desconhecido”. Ela passará por inúmeros lugares antes do retorno a Santiago, entre os quais Londres, Israel, Egito, Turquia, Ucrânia, Polônia. Seu foco é juntar informações que a aproximem de sua origem, ainda que considere o objetivo improvável, e também registrar as impressões da viagem. O percurso acaba abrindo outros caminhos que transformam a obra em uma reflexão sobre a imigração, sobre a experiência do vagar e sobre a colcha de retalhos culturais que forma cada um de nós. Ainda que não seja o foco do livro, a vivência de uma mulher viajando sozinha no final dos anos 90 também surge em seu horizonte de reflexão, como neste trecho em que a viajante está em um navio rumo a Chipre:
Não que eles a achem irresistível, mas uma viajante solitária está procurando sexo, senão por que viajaria? Nessa mesma ordem, tentam abraçá-la apenas como amigos, espremê-la ao dançar e embebedá-la.
Todas as situações vividas pela viajante são descritas por um olhar reflexivo e crítico e no decorrer da obra haverá histórias sobre as pessoas que ela encontra e sobre os lugares que visita. Em busca de suas raízes e curiosa sobre o álbum de fotos, as narrativas e impressões da viajante acabam reforçando a ideia de desenraizamento, uma vez que a maioria das pessoas com as quais convive também está em deslocamento ou tem parentes que se desgarraram. Por conta de situações históricas ou pessoais, guerras, desejos de melhorar de vida e outras circunstâncias, a obra mostra essa circulação migratória pelo mundo. Em pequenos fragmentos, a escritora também consegue criar imagens que condensam críticas sociais, como neste parágrafo sobre o “subterrâneo” e a “superfície” londrinas:
Kilburn. Às dez da noite de 24 de dezembro de 1998, deslocam-se pelo subterrâneo de Londres um paquistanês, dois africanos, um asiático, dois colombianos e uma chilena. Em algum lugar da superfície, a família real abre seus presentes.
O caráter fragmentário é uma marca da obra, tanto na estrutura como numa espécie de divisão que se opera na figura da própria viajante — ora ela escreve um diário, ora há um narrador (ou narradora) que a coloca como personagem. O livro é bastante híbrido e apesar da obra poder ser descrita como um relato de viagem, sua configuração flerta com uma série de gêneros que se misturam.
Entre o “eu” e o “ela”
O livro se molda como um diário de viagens em primeira pessoa entremeado por narrações em terceira pessoa. Nessas narrações, lemos: “a viajante”, “ela”, “a turista chilena”. Deslocar-se do “eu” para o “ela” e colocar-se como personagem é uma estratégia ficcional que permite a investigação de si como um outro. A própria escrita também se coloca como tema, já que em uma das entradas do diário existe a demarcação sobre a origem do livro:
Alugo um apartamento num vilarejo do Chipre do Sul para escrever sobre um viajante que encontra um álbum de fotos com o seu sobrenome manuscrito na primeira página. Eu podia ter escolhido Rodes ou Alexandria, escolhi o Chipre pois era aqui que Lawrence Durrell escrevia. Já instalada num vilarejo no alto de um morro, a quatro quilômetros da praia, descubro que o escritor inglês morava no Chipre do Norte, mas estou aqui e a sacada com vista para as casas caiadas e o mar é ideal para viver em um lugar sem outro vínculo além da escrita.
Com essa entrada a autora também estabelece o jogo ficcional de um livro que até este momento pode ser lido como uma busca pessoal da autora, algo próximo de um relato autobiográfico, já que a viajante se chama Rimsky. Na verdade, o livro é uma junção das duas coisas e a dificuldade de categorizá-lo está nessa mistura de registros que extrapolam o diário e as narrações da viagem. Um exemplo é a foto da matéria de um jornal de setembro de 1999 com a manchete: “En Odesa, escritora Rimsky olvida a Chile”. Há uma nota dizendo que se trata de uma carta da viajante publicada no jornal. Se momentos como esse nos aproximam do mundo real e autobiográfico, outros trechos parecem querer destacar o mundo ficcional:
— Conhece alguém em Odessa?
— Não, ninguém.
— Ninguém na Ucrânia? E se acontecer alguma coisa com você? Venha me buscar às cinco e eu te mostro a cidade.
Não será a primeira vez que um personagem salva seu autor.
Momentos como esse, inclusive com um toque de humor e interlocução com o leitor, misturam-se a uma série de outros fragmentos. Nos moldes da literatura de viagem, há ainda a descrição dos espaços visitados, as impressões da turista, o contato com moradores locais. Algumas dessas figuras se destacam como “as golpistas” na Ucrânia, a romena poliglota que conta sua triste história em um bar, o estudante que ela conhece em Praga, a eslovena que reconhece uma das fotos do álbum. Essas histórias pessoais vão compondo, em um plano maior, as histórias daquelas famílias e povos. Há também imagens: fotografias de passaporte, recortes, anotações em cadernetas, desenhos, mapas. Há ainda cartas de amigos e parentes recebidas durante o período. As fotografias do álbum não aparecem, mas vão sendo descritas como uma espécie de narrativa paralela que acompanha os demais relatos. Toda essa miscelânea compõe a obra e coloca o leitor no centro de um livro indefinível que oscila entre a ficção, o relato de viagem e o diário. O fio que se mantém é a busca da viajante pela origem das fotografias e consequentemente pelo seu passado. As experiências no percurso acabam sendo mais significativas do que seu objetivo, uma vez que ela não encontra muitas respostas.
Ao longo do livro, ela tenta chegar ao vilarejo de Ulanov, na Ucrânia, cidade natal de seu avô paterno e espécie de horizonte de sua busca. Quando chega ao local não encontra ninguém que tenha conhecido algum Rimsky, mas consegue imaginar seu avô vivendo ali e escreve uma carta a seu pai sobre a visita ao vilarejo. A imaginação dos viajantes a respeito dos lugares também é uma tônica da obra.
Já no final da obra, em Praga, o narrador comenta que ela não teria conseguido “completar” sua biografia. O caráter fragmentado de Posta-restante transmite a tentativa de dar forma a uma busca que não se concretiza mas que, pelo caminho, produz reflexões que vão muito além da história pessoal da viajante e parecem conjugar a experiência de “errar” pelo mundo compartilhada por muitos.