Eros novamente
Arranca-me os membros e me atormenta…
Eros amargo e doce, monstro invencível
E tu, minha Átis, tu, magoada comigo,
Tu te foste, voaste para Andrômeda
Safo de Lesbos
O vício do amor, de Mario Sabino, versa, entre outras coisas, sobre a necessidade humana de busca do amor em seus diferentes matizes. De certa forma, propõe uma perspectiva de leitura e reatualização de um mito primordial. Ou seja, este trava ininterrupto embate com o tempo histórico e com ele dialoga, contamina-se e metamorfoseia o mito original. Daí que, cínica ou ironicamente, busca-se o amor para se criticar algumas de suas versões mais idealizadas, como a romântica, e se refletir sobre o amor atormentado de um Eros amargo e doce, monstro invencível ou mesmo inacessível que desde a velha Grécia, passando por Roma e pelo romantismo, chega em ruínas, mas chega, ao momento contemporâneo em que vivemos.
Na primeira parte do livro, um personagem narrador começa a ser construído através de um discurso assumidamente provocador. Trata-se de um jornalista encarregado de discorrer sobre o tema trabalho. Como uma metralhadora giratória, vai mesclando sua problemática pessoal, profissional e afetiva a questões políticas, sociais e teóricas. Ataca ferinamente instituições, personalidades intelectuais e científicas, a si mesmo e a humanidade. Em um texto jornalístico com o tema proposto, poderia caber tudo isso? Parece que sim: “Não estou desorientado, é o que eu estou dando para ler: meu trabalho sobre trabalho”. Apesar de ir de Schopenhauer ao Google, a vida privada e aparentemente banal desse sujeito é o eixo para a maior parte dos questionamentos desencadeados. O amor, suas buscas, traumas, jornalismo e escritura são temáticas subjacentes de uma humanidade desencantada, que se expõe em seus conflitos.
Um artigo que destoa, ou melhor, contraria tudo que os editores da revista esperavam tem o destino óbvio de ser rejeitado. Assim sendo, o jornalista transforma-o em primeira parte de um romance a ser desenvolvido. O fazer literário de um “eu” atormentado assume tomadas metaficcionais e ajuda a construção de um narrador no qual não se deve confiar, pelo menos ao pé da letra. Não que seja um mentiroso, é um sincero fingidor, se assim quisermos defini-lo. Defende a verdade através da palavra, mas não podemos esquecer que é a sua verdade que está em pauta, ainda que não saiba qual ela seja exatamente. Mesmo que precise do outro para espelhá-la — dada a dificuldade de amar esse outro como ele se apresenta e de conseguir idealizá-lo.
Embora, do ponto de vista da trama, haja certa linearidade dos principais acontecimentos, o que garante o suspense das ações, o texto se compõe na montagem de episódios que se dispõem em idas e vindas. “Minha vida também mudou depois que Isabel morreu. Volte-se ao dia em que a visitei pela última vez.” É nessas idas e vindas que os demais personagens vão sendo apresentados, sem preocupação de aprofundamento. Apesar de afirmar que escreve sem pensar, contrariando A arte de escrever de Schopenhauer, a referência a teóricos e a uma cultura intelectual, mesmo que cínica e fragmentada, obriga-nos, enquanto leitores, a antever um projeto prévio. Este parece partir de uma racionalização detalhada, tanto dos aspectos formais quanto dos de construção de sentidos, no aparente non sense do discurso inicial. Seria subestimar quem está lendo nos dividir em categorias de dois tipos — “os que privilegiam a linguagem” e os que “privilegiam a estrutura”. Todo leitor, teórico ou não, apura sua sensibilidade crítica atentando para ambos aspectos e até outros mais. Mas deixemos as categorizações dos tipos para os sectários de plantão. E tomemos a zombaria do narrador como uma forma de expressão contemporânea de provocar perguntas que facilitem a reflexão.
Entre seres achatados
Na segunda e terceira parte, o amor, encontros, desencontros e seus conceitos são tratados efetivamente através da ação do protagonista e demais personagens. O jornalista é brindado com uma herança oferecida pelo pai que mal conhecera e o abandonara quando criança. Vai morar em Roma, cidade natal do pai falecido, sem preocupação financeira. Roma talvez seja o seu amor mais bem sucedido, pois declara amar a cidade e sentir-se amado por ela. No mais, vai levantando nos capítulos que se seguem suas relações afetivas com um suposto amigo e com as mulheres de sua vida, a começar pela mãe, depois Isabel, Lorenza e Renata. Na primeira parte, elas já são anunciadas como personagens achatadas: “Agora me sinto à vontade para contar o que ocorreu com as sombras que levantaram do vale das histórias mortas para dançar entre essas personagens achatadas”. Aparentemente, essas personagens pouco desenvolvidas, cuja serventia na narrativa parece superficial, vão além de si mesmas. São sempre apresentadas sob o olhar narcísico do protagonista e servem de espelho para suas buscas, se não exatamente do encontro amoroso com o outro, pelo menos para sua busca de sentidos para a própria vida.
A mãe representa o abandono, puta a seus olhos de menino, quando a surpreende trocando favores pela sobrevivência de si mesma e do filho. Isabel é a ex-mulher, apaixonada, inicialmente, e vazia de sentidos e de movimentos numa vida que a paralisa até lhe extinguir, deixando culpa e ressentimento no protagonista. Lorenza é a analista, nos braços de quem mergulha para depois experimentar mais uma vez a orfandade e o abandono. E, por fim, Renata, a namorada professora de dança e militante clandestina de uma causa incompreensível para o narrador. Dentre os “poucos” personagens apresentados, temos, ainda, Saulo, um amigo que se transforma em rival e inimigo durante a narrativa. O pai é a sombra, um fantasma que o persegue e com o qual tenta aproximação, e ainda com quem, de alguma forma, concilia-se. Todos representam um lado apaixonante ou obscuro de si mesmo.
A discussão do amor como vício vai, portanto, além da crítica ao amor romântico. Parte do mito do Eros primordial, maldito, caótico, o Mito do Andrógeno e da busca da felicidade perdida na completude mítica, para atualizá-lo no Eros Narcísico de interpretação freudiana. Ou seja, trata-se da impossibilidade de amar o Outro ou por esse Outro ser amado. Discute-se o amor ao mesmo, ou seja, à própria imagem refletida no Outro; ama-se (ou não) o espelho que o outro representa para si mesmo. Neste sentido, o outro ou os outros só podem ser personagens achatadas, o próprio rosto espelhado na face plana de um lago. Um lago em cujas águas o Narciso contemporâneo mergulha, sem se dar conta sequer do perigo de afogamento, tão absorto está em confundir o que o rodeia com a sua própria imagem, na sociedade do espetáculo em que vivemos.