O início da década de 1920 necessita de um estudo aprofundado e livre das imposições teóricas marxistas, que se tornaram, desgraçadamente, hegemônicas entre nós. Só um espírito que não esteja disposto a, de forma cega, enaltecer a mentalidade revolucionária poderá elaborar a análise que Antônio Carlos Villaça esboçou em trechos d’O pensamento católico no Brasil, ao recordar a concomitância de fatos tão díspares quanto relevantes: em meio às crises políticas dos governos Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o surgimento da revista A ordem, a fundação do Partido Comunista Brasileiro e do Centro Dom Vital, a Revolta dos 18 do Forte, início do Tenentismo, a Semana de Arte Moderna, a Revolução Paulista de 1924 e o princípio da Coluna Prestes — sem nos esquecermos, é claro, das comemorações do Centenário da Independência, que podem ou não se encontrar no substrato desses acontecimentos.
É nesse contexto que surge, em 1924, Literatura reacionária, de Jackson de Figueiredo, ele próprio fundador do Centro Dom Vital, sob influência direta do então arcebispo-coadjutor do Rio de Janeiro, dom Sebastião Leme da Silveira Cintra. Reunião de quinze artigos publicados na imprensa carioca entre dezembro de 1923 e maio de 1924, o livro sintetiza o pensamento desse ensaísta que havia se contraposto ao Tenentismo — em A reação do bom senso; contra o demagogismo e a anarquia militar (1922) — e tornara pública, em Pascal e a inquietação moderna (1922), sua conversão à Igreja Católica.
Escolhas repreensíveis
Os artigos que compõem Literatura reacionária nascem da oposição do autor ao que ele chama de “desmandos de um romantismo político”; por meio desses textos, Jackson de Figueiredo deseja apresentar a seus leitores
alguns aspectos dessa literatura de reação, anti-revolucionária, anti-sentimental, anti-romântica, que vai, ora definidamente católica, ora revestindo-se somente do senso prático social do catolicismo, não só reduzindo a poeira dos abalados créditos das doutrinas individualistas e materialistas, como, de alguns anos para cá, assentando já as bases de uma remodelação social, consciente e positivamente inspirada nos ensinamentos da Igreja.
À parte a índole onírica das afirmações — revelam o ideal do autor, mas não a realidade — e do elogiável caráter anti-revolucionário de Jackson de Figueiredo, que o impelia a lutar em favor da legalidade e da ordem pública, os textos descambam, muitas vezes, para uma defesa acrítica do fascismo italiano, da ditadura de Primo de Rivera e do Integralismo Lusitano, na figura do poeta António Sardinha. Ao enaltecer a “Ordem” e a “Hierarquia”, Jackson de Figueiredo chega a elogiar Augusto Comte — “gênio realmente formidável” — e Charles Maurras, desconhecendo, presumo, o tanto de pensamento agnóstico e anticatólico que havia na obra do líder da Action Française. Conseqüência fatal dessas escolhas, é possível entrever laivos de anti-semitismo ao menos em dois artigos.
Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros, por exemplo, a obra de Auguste Viatte, mas Jackson de Figueiredo o faz numa linguagem que está sempre pronta a cair no elogio fácil e no circunlóquio, tão caros à retórica nacional:
O homem que […] possui […] o gênio da língua francesa, não foge, não pode fugir às leis mesmas do pensamento daquela pátria espiritual, onde o próprio ceticismo e a própria revolta como que guardam da harmonia de suas tradições, pelo menos o aspecto exterior, como são exemplos um Saint-Beuve, um Renan, um Rivarol, um Paul Louis Courier ou um Anatole.
Não bastasse a falsa correlação que abre o período — como definir o “gênio da língua francesa”? E por qual motivo quem o possui não pode fugir às imaginárias “leis do pensamento” que a França supostamente detém? —, a citação, num mesmo grupo, de Ernest Renan e Antoine de Rivarol — o primeiro, reconhecido ateu, e o segundo, famoso anti-revolucionário — demonstram, no mínimo, alguma confusão.
No mesmo artigo, próximo do final, Jackson de Figueiredo compõe uma sucessão de adjetivos inúteis, fechando o trecho com nova generalização sobre o “espírito francês”:
Uma coisa, porém, é indiscutivelmente admirável na obra do ilustre crítico suíço, e essa é a demonstração da superior humanidade do espírito tradicional ou clássico, só completado, no Ocidente, pela magnitude do Cristianismo, e de quanto esse espírito se identifica com o espírito francês.
Tal retórica dilui a força de uma idéia correta — a importância do Cristianismo para a civilização. Reutilizada em outro texto, transforma numa peça encomiástica, simplesmente ilegível, o que poderia ser um estudo provocativo sobre o padre Júlio Maria, defensor da doutrina social de Leão XIII. Problema semelhante ocorre nesta definição — mais vazia do que superficial — do “verdadeiro poeta cristão”:
[…] Aquele em que realmente a poesia não é um acidente da sensibilidade, mas um feliz resultado do contato de toda a totalidade humana, do eu, em toda a sua complexidade, e o mundo.
Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma cansativa, e de longas citações em francês, típicas do eruditismo que até hoje nos assedia, Jackson de Figueiredo não tem a vivacidade e a ironia do católico e anti-republicano Carlos de Laet, sobre quem escrevi na edição de março deste Rascunho. Seu texto enfada, como nesta seqüência de elogios a Ronald de Carvalho:
[…] Tudo o mais já estava em Luz gloriosa, como nos Poemas e sonetos: uma tranqüila exaltação diante de toda a beleza, assim do mundo exterior como do interior, naquele, impressionando-te mais as cores vivas, máxime o rubro e o amarelo, neste, que envolve aquele, uma certa cinza de enfaro e desencanto, de que resulta que a tua obra se mantém sempre como expressão da inquieta fortaleza de um mundo coroado de luzes e cores de um crepúsculo matutino, que tanto evoca o heroísmo como a renúncia, que tanto impele a amar a vida com ardor e entusiasmo, como a lastimá-la e, por assim dizer, tangenciá-la nas asas da mais delicada mas, ao mesmo tempo, da mais desoladora melancolia.
Debilidades
Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a “absoluta superioridade da obra de arte católica em relação a qualquer outra obra de arte”, como afirma no texto dedicado a Henri Massis.
De fato, tem razão quando salienta que “o artista é um ser moral”, que “o produto da sua atividade tem de refletir a ordem da sua consciência” e que a arte precisa ser julgada inclusive sob o aspecto ético — exercício que a crítica literária contemporânea pretende esquecer quando desvincula a obra literária da vida real, como se fosse apenas híbrido conjunto de signos, produto de uma geração espontânea. Mas nenhum desses acertos garante ao escritor católico qualquer tipo de superioridade estética. Na verdade, Jackson de Figueiredo mostra-se contraditório, pois, semanas antes de fazer esses comentários, escreve a respeito do jesuíta Leonel Franca e denuncia a “formidável afirmação de mau gosto” da literatura católica brasileira…
De qualquer forma, não viveu o suficiente para ler a crítica de Flannery O’Connor — no ensaio Os romancistas católicos e seus leitores (Mystery and manners: Occasional prose) — àqueles que, “extasiados com sua condição cristã, esquecem sua natureza de escritor”. Flannery recorda a tais autores a história do lobo de Gubbio: convencido por São Francisco de Assis a se tornar um lobo bom, nem por isso muda sua natureza e passa a andar sobre duas patas. Mas Jackson de Figueiredo poderia ter lido o ensaio The morality of the profession of letters, de Robert Louis Stevenson, para quem “algo ruim pobremente executado é algo ruim do princípio ao fim”, não importando a religião ou a teoria estética que o escritor segue.
Encontramos superficialidade e contradições também nos artigos dedicados a contestar Ronald de Carvalho, como se nosso ensaísta experimentasse algum tipo de dissociação. Em 30 de janeiro de 1924, numa resposta cheia de dedos ao autor de Pequena história da literatura brasileira, afirma não querer “provocar polêmicas com ninguém desse nosso (quero dizer: brasileiro) inquieto campo de letras, do qual, por muitos motivos, como já te tenho dito, me julgo afastado”. Logo a seguir, quase se desculpando pelas críticas frouxas aos modernistas, repete a argumentação insípida:
É claro que tudo isso faço “de fora”, como de um campo para outro, isento de paixão propriamente estética, sem fazer, portanto, concorrência a nenhuma espécie de homem de letras, nem ao crítico literário, nem ao poeta, nem ao ficcionista, em geral.
Sou pura e exclusivamente um católico, que aliás só atua pela pena, por falta de outras capacidades mais positivas de homem de ação.
Contudo, dias depois, em 6 de fevereiro, ao escrever sobre Perillo Gomes, parece ter esquecido a ladainha inconvincente e a autodefinição algo melíflua, pois, ao dissertar sobre a relação entre escritores e críticos literários, assume claramente outra posição:
Note-se que quem está falando não pode ser suspeito aos nossos críticos, em primeiro lugar, porque também já tem sido classificado entre eles, em segundo lugar, porque algumas das suas mais sérias admirações, no meio literário brasileiro, é por alguns dos nobres espíritos que, da minha geração e da imediatamente anterior, se têm feito notáveis nessa lata missão intelectual.
Por vezes, tem-se a impressão de que o combatente despertará, como no final do artigo dedicado a Auguste Viatte, em que tece observações a respeito dos futuristas — “sereias de indisciplina e fuliginosas imaginações” —, criticando o movimento estético que vem “ao Brasil cantar de galo, como se não os houvera no terreiro…”. Mas Jackson de Figueiredo não enfrenta o mais deslumbrado dos que aderiam a tais idéias e prefere contemporizar: “Ninguém nega a sinceridade nem o talento do Sr. Graça Aranha, que aparece como chefe desses ‘envolvimentos’ futuristas”.
Em 2 de julho, no artigo A lição de Paul Bureau, parece, por um momento, que finalmente abandonará o tom impessoal, mas está acima de suas forças dar nome aos bois:
E, ao contrário do que pensam muitos, julgo que chegou mesmo a hora em que é necessário acabar, destruir, acabar de vez com umas certas originalidades do nosso meio, que são piores que a pior imitação, e redundam em incrível degradação da nossa vida social. Não se compreende, realmente, que se arvorem em iracundos pedagogos, em duros mestres de moral, em juízes de tudo quanto vive num dado meio, justamente os indivíduos que nele nem se dão ao cuidado de fingir um certo amor à virtude e algum horror ao vício. […]
Sinceridade
Se lermos Jackson de Figueiredo com uma pinça, ainda é possível colher seus acertos. Sua crítica ao romantismo — “cuja característica é a exaltação, até quando essa exaltação seja a da mais depressiva melancolia, o que é fácil apreender do mais ou menos ridículo profetismo de todos os chefes românticos” — permanece instigante. No artigo Problemas de educação nacional e de instrução pública, publicado em maio de 1924, arremete contra inominados intelectuais, denunciando o que sempre foi e continua a ser regra entre nós:
A coisa que já parece a mais natural deste mesmo mundo […] é alçar o colo à petulância de um gaguejador de alguns nomes difíceis, roubados à técnica de um forjador de novidades pedagógicas, e com armas tão fracas atirar-se em cheio contra verdades que têm resistido ao arrojo de homens mais prudentes e mais entendidos do que falam. Não raro esses pobres espíritos são incapazes de filiarem no sistema filosófico originário as meias idéias que agitam e os agitam. Não raro são absolutamente ignorantes do que representam na história do pensamento humano as idéias que neles se fizeram preconceitos.
Descontados seus equívocos estéticos e políticos — estes últimos o levaram, inclusive, segundo Wilson Martins, a trabalhar como chefe da censura no governo Artur Bernardes —, Jackson de Figueiredo deixou ampla correspondência, parte dela ainda inédita, cujo estudo pode oferecer às novas gerações um perfil completo — distante, em igual medida, do elogio desmesurado e da aversão preconceituosa —, permitindo que surja o homem sincero, que dizia só compreender plenamente o seu cristianismo quando estava só.