A propósito do livro O mal obscuro, do escritor italiano Giuseppe Berto (1914-1978), é necessário mostrar, logo de início, duas de suas características principais, uma ligada à forma e outra ao conteúdo. No que se refere ao estilo, a obra se destaca por ser um monólogo em primeira pessoa, no qual o narrador é verborrágico e contundente. Não é à toa que os parágrafos são extensos e a pontuação é escassa. Seguindo uma linha de raciocínio tortuosa e nem sempre objetiva, o leitor é envolvido por uma narrativa complexa. E aqui chegamos ao que tange o conteúdo. Ao mesmo tempo em que se trata de um romance, a obra também é o relato de um tratamento psicanalítico cujo objetivo é encontrar as raízes e as razões de um sentimento que mescla estupor, temor, horror e ironia profundos. Em verdade, a corrosão deste mal não perdoa nada nem ninguém. Dentro dela, todos são vítimas e culpados — do personagem principal, herói e anti-herói, aos familiares, que são coadjuvantes na trajetória do narrador. Para que o leitor possa acompanhar e entender o objetivo desse relato, é preciso mergulhar na densidade das palavras e na imensidão dos parágrafos. Embora o mal esteja à espreita, é preciso estar atento para enxergá-lo.
O narrador começa por abordar a questão-chave da história: sua complexa relação com o pai. Aliás, essa é uma informação que figura logo nas primeiras linhas, mas, a partir disso, desenvolve-se um novelo de frases entrecortadas cujo objetivo não é outro senão tragar o leitor para a história, de modo que ele não consiga escapar dos detalhes que aparecem a cada palavra. Aqui, pode-se supor que o autor tenha optado por esse “esquema” justamente porque seu romance, fugindo do comum, raramente traz os personagens, principais ou coadjuvantes, pelo nome. Assim como não traz um cenário pronto. Giuseppe Berto constrói esses elementos aos poucos, à medida que também mostra a densidade de sua história. Os problemas com o pai, segundo ele analisa, remontam à infância infeliz, período em que ele era o único varão entre as cinco irmãs. Por essa razão, no único filho homem foram depositados toda a atenção e os cuidados para um futuro bem-sucedido. E é aí que começam a aparecer as frustrações do entorno junto ao narrador-personagem. Pois é logo nessa tenra infância — ainda que ele seja, de certa forma, “mimado” — que as cobranças surgem para aterrorizá-lo.
No livro, essas lembranças são conjugadas com momentos de reflexão por parte do autor. A cada cena, ele postula um comentário que interpreta o que ele viu e o que ele sentiu. Assim acontece quando se inicia o relato acerca da morte de seu pai. O narrador se mostra confuso com esse fato, mas nem por isso poupa o pai ou a si próprio de seus comentários, por vezes melancólicos, por vezes mordazes. “Me pus a pensar com todas as minhas forças não quero que ele morra, não quero que ele morra, como se a coisa dependesse só de mim, e finalmente comecei a chorar, chorei longamente em silêncio até quase apagar da lembrança o motivo daquele choro, e quando aquela mulher acordou com fome e viu que eu chorava aproveitou a ocasião para chorar também, e tanto que tivemos de fazer amor uma segunda vez”.
Se Berto não perdoa nem a si mesmo, que dirá dos comentários gerais, espécie de aforismos, na voz de seu narrador, como se fossem disparos contra a moral e a ordem estabelecida. O politicamente correto ficaria sem palavras para tantas certezas cruéis, como a dos médicos que seriam sádicos por sugerirem determinados tipos de operação ou das crianças que secretamente desejariam ter uma outra estranha como mãe, mais carinhosa. Essas afirmações não são fruto de uma seqüência lógica, do tipo que segue um caminho já traçado. Pelo contrário. Este romance possui um sabor único de ter sido escrito uma vez só, não pelos erros de sintaxe e de forma, mas pela natureza brutal de suas linhas.
Quando escreve sobre seu próprio tratamento, o narrador não deixa escapar suas considerações e desconfianças. Ironiza Freud e o divã, dizendo que este último apetrecho, ao contrário de o deixar relaxado, faz com que ele fique tenso, obcecado por inúmeras conjecturas: “(…) sempre fiquei ali [no divã] com o meu grumo de tensão no estômago, com a habitual preocupação de dar uma ordem rigorosa aos meus pensamentos (…)”. Apesar de todos esses detalhes, os argumentos giram em torno do pai, sobre sua presença ao mesmo tempo opressora e omissa na infância, provocando reações artificiais do narrador. Por outro lado, há que se mencionar a relevância da política e da religião no contorno da história. Obviamente não se trata de um romance-protesto, do tipo panfleto político, mas é evidente que, ao fazer referência ao fascismo e ao catolicismo, ele mostra como dois pontos tão cardeais provocaram dilemas morais permanentes na sua personalidade.
Em determinados trechos, o monólogo se confunde com uma confissão. O autor, inclusive, traça esse paralelo, enfatizando que, em ambos os casos, dizer a verdade é fundamental. Não há restrições, portanto, no momento de abordar os fatos mais sórdidos, como dos ocorridos com Lúcia Suja, a menina, aparentemente inocente, que oferecia favores sexuais a todos os garotos. Do mesmo modo sobra ironia para a intelligentsia da época, num trecho, aliás, que é bastante curioso. O médico pede ao paciente que ele conte seus sonhos. Depois de muito relutar, ele decide extravasar o mais atraente de todos: “(…) ao passo que ficava todo contente quando tinha sonhos para contar, como na vez em que sonhei ter denunciado com voz estentórea diante de um anfiteatro de 10 mil pessoas os enormes defeitos de La Dolce Vita obtendo um grandioso sucesso e muitos abraços inclusive do próprio Fellini.” E assim caminha a narrativa, sem ordem definida, em busca apenas da extração de todas as impressões recolhidas, como se essas pudessem revelar a ele como ficar livre, de uma vez por todas, daquele mal obscuro.
Dentro de suas próprias confissões, o narrador anuncia uma explicação acabada para a sua mais profunda inquietação: “Por causa das coisas injustas e obscuras que o mundo se alarga”. Em outras palavras, a raiz do mal que ele sente pode ser a mesma força que o precipitou a buscar essa resposta; o ímpeto questionador é, em contrapartida, o mal estar que não o deixa tranqüilo. A culpa, o complexo e o remorso na infância foram os estímulos que forjaram seus dilemas morais quando adulto. Pode-se dizer que foi em virtude desse histórico problemático que o narrador foi buscar ajuda na psicanálise, assim como fez o autor para se ver curado de uma neurose que o afligiu durante dez anos de sua vida. Mais do que transformar sua experiência em romance, Giuseppe Berto consegue em O mal obscuro atravessar as fronteiras do realismo e provocar o leitor de forma constante e incômoda, pois inúmeras são as passagens em que o relato confessional abala o senso comum.
O fato deste monólogo de natureza memorialística possuir mais relação com a psicanálise do que com a literatura pode, num primeiro momento, distanciá-lo do campo das idéias ao qual pertence — a saber, as letras. Não obstante isso, é fundamental mencionar que uma das grandes conquistas da boa literatura em todas as épocas foi desvendar os segredos da alma pela palavra. Caso fossem usados termos médicos, o diagnóstico seria o seguinte: a psicanálise possui a fórmula, porém o processo de cicatrização passa pela literatura. É nesse ponto que a obra de Giuseppe Berto transcende seu objetivo. Com uma linguagem rica de significados, sua narrativa mostra quão dura foi a batalha contra uma doença que ele mal podia enxergar ou compreender, apesar de senti-la com todas as suas forças. E, quando finalmente vence, ele descobre que nem por isso todos os seus demais problemas estão resolvidos. A cura é apenas o primeiro passo de um longo caminho. Essa trajetória poderia ter como epígrafe as palavras de Prometeu acorrentado, que foram citadas pelo autor no posfácio que acompanha o romance: “O narrar é doloroso, mas é doloroso também o silêncio”.