Um dos equívocos de leitura da poesia é acreditar que o autor é real. O poeta não é real, real é o leitor. O escritor e filósofo carioca Alberto Pucheu preparou seu caderno de notas, algo como uma bússola de sua poesia, apontamentos mínimos de sua travessia verbal. Relaciona a poética com a filosofia, casando as duas áreas em investigação da sensibilidade. Seus ensaios breves combatem o estigma da filosofia na poesia. Recupera a aura de uma produção literária fronteiriça, que já gerou no país a teologia do mínimo de Manoel de Barros e Adélia Prado, os mitos sedutores de Dora Ferreira da Silva, os teoremas de Orides Fontela e a alquimia de José Santiago Naud e Foed Castro Chamma. Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, é um exemplo de livro espesso ainda desvalorizado pela historiografia, apesar da vibrante metafísica, densidade arquetípica e exultação rítmica.
O título de Pucheu já causa a estranheza necessária: Escritos da indiscernibilidade. Lembra nome de tese pelo padrão culto e rebuscado, mas é uma fachada para elucidar semelhanças e diferenças entre os dois campos. Alberto começa polemizando, destruindo lugares-comuns como o de dizer que a filosofia e a poesia se alimentam das dúvidas e interrogações. Ele não desperdiça chances, como um autor que joga metade de um tempo para o time dos filósofos e a outra metade para o time dos poetas. Tudo fica empatado com os gols dele. “Poesia e filosofia não principiam pela indagação; nem pela dúvida. Mas pela exclamação das palavras que insistem em transbordar com o admirável, a ponto de não se distinguirem dele.”
O que não pode ser dividido é poesia. A criação partiria de uma descoberta passional, não de um questionamento frio e higiênico. Emerge de uma revelação fútil, de um detalhe fugaz, em que o “próprio cotidiano se descobre extraordinário”. O poeta não teria que decifrar o enigma, ele já é o enigma, procurando perdurar a beleza da verdade. Nesse sentido, não quer resolver o mistério, o equivalente a assassiná-lo, mas preservá-lo. A poesia é o transbordamento interno, nunca externo. Não está no verso, mas no seu trânsito entre o possível e o inadmissível. As instruções de uso são: “desalgemar o poético do poema, do que se convencionou chamar de poema; deixá-lo fugidio pela cidade, perigoso, arrastando o que lhe aparece pela frente”. Resulta daí a importância do pensamento poético contar com o “auxílio dos escombros”, ou seja, da destruição dadivosa, da afirmação pelo aniquilamento e da junção de coisas antagônicas em um mesmo invólucro. Uma dos trunfos de Alberto Pucheu é desestabilizar antônimos. “Habitualmente, compreende-se o prosaico como o contrário do poético. O contrário do poético, entretanto, é o próprio poético”. Esse paradoxo talvez seja o maior acerto do livro ao perceber o poema como inimigo do poema. Quando uma metáfora sobrecarrega a outra, nenhuma faz sentido. O poema é escapar da metalinguagem, não se olhar no espelho, se ausentar, para fazer valer a vida. Assim retomamos a perspectiva do “poético como gênero desviante” de Benedito Nunes, um dos teóricos corajosos a fazer analogias entre a poesia e a filosofia a partir de autores como Hölderlin.
Na filosofia, os pensamentos se misturam, sem que cada um perca a individualidade Na poesia, eles se fundem, soldados em metal e imagem. Eles sacrificam a sua origem para ganhar uma outra textura, aparecendo mais como um espírito do que como corpo. Como diz Pucheu, o poema deriva de conexões inesperadas entre palavras cotidianas, das zonas de instabilidade. Articula-se dinamizando relações, e não estagnando idéias. A proposta de Escritos da indiscernibilidade, dividido em quatro capítulos, é admitir a casualidade e o improviso na ação lírica. “Para que, na complexa trama da superficialidade, um pensamento poético, incondicionalmente a favor da vida e de seu perigo oscilante, aposte no presente irretratável.” Falar não é aceitar a fala, mas desafiar a fala, resistir às facilidades. Buscar a simplicidade orgânica, não o simplório. Difícil? Não, se o escritor optar pela fluência do que ouve do que pela ambição de ser ouvido.
A filosofia e a poesia aparecem irmanadas, com destinos complementares, ainda que diferentes. “Há poetas que até sabem escrever, mas como pensam mal! E filósofos que sabem pensar, mas como lhes falta o ímpeto da criação!”, ironiza Pucheu, fiel adepto da gramática da rua e da sintaxe do trânsito. O escritor defende o tratamento de esgoto da literatura brasileira. Pede bueiros nas páginas, prevenindo a inundação sentimental e o experimentalismo oco.
Poesia hiper-realista
Alberto Pucheu, 37 anos, é de uma linhagem que não separa a poesia da vida. Olha simultaneamente à esquerda e à direita, para “a paisagem e o livro”. Evita a faixa de segurança: tem conhecimento de causa que a poesia serve para dizer o que não somos, ao contrário dela decretar um perfil definitivo. Com cinco volumes publicados (Na cidade aberta, Escritos da fragmentação, A fronteira desguarnecida, Ecometria do silêncio e A vida é assim), une a tradição reflexiva clássica com o despojamento verbal e andamento coloquial modernista. Representa um filósofo leigo, cujo sistema de pensamento é constituído de praias, favelas, ruínas e arranha-céus. Obsessivo, temas voltam à tona confirmando uma seqüência antológica entre seus livros.
A vida é assim (Azougue, 2001), seu livro de poesia mais recente, tem um viés digno da escola de cinema italiano neo-realista. “Entro, com os pés descalços, na cidade aberta.” Além das coincidências, cidade aberta remete a um dos filmes mais conhecidos dos anos 40 de Roberto Rosselini e o título de estréia de Pucheu.
Entretanto, o poeta não quer imitar a realidade. Sugere um hiper-realismo, com um toque macabro de imaginário para extrair o melhor e o pior dos dias. Decantado em três capítulos, a obra contém 13 poemas em versos livres, três crônicas poéticas e uma tradução de um poema inexistente. Em linhas gerais, apresenta um homem na crise dos 30 anos, que avalia com pessimismo as possibilidades de seu futuro.
O sumário já permite perceber que estamos diante de um texto especial. Prosa e poesia trocam de guarda, ambas alicerçando a expansão e elasticidade da linguagem em direção à vertigem do cotidiano. “Difícil ficar ileso aos verdes da manhã, ao trabalho diário, aos acontecimentos que, mesmo corriqueiros, me contaminam.”
O escritor enquadra as miudezas com luz natural e foco crítico. Tudo passa para permanecer. A intensidade da sonoplastia revela-se no pendor discursivo e antiformalista. Capta inclusive os ruídos e os choques, incorporando ao vocabulário termos abruptos e pouco poéticos, a exemplo de “hidropisia” e “rinocerôntica”. Em seu caldeirão de timbres, fotografa o vaivém de vendedores entre o trabalho e o lazer.
Não existe uma única interlocução e nível de linguagem. São vários estrados sonoros e visuais. A diferença é que o autor medita com serenidade, tem consciência dos seus alvos. “Recolho do mundo uns tiros de espanto”. É um atirador de elite, disposto a abrir as fronteiras da cidade e do próprio canto.
Ao pontuar “todo lugar é Rio”, também afirma que todo lugar é poesia. O zelador com radinho de pilha, o entregador de lista telefônica e o varredor de rua são catalisadores da eletricidade de suas observações. A fluência descritiva e irônica lembra Tabacaria de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. A visão não é a de um ponto fixo, de alguém parado em uma janela, e sim da janela em movimento de um automóvel. Não existem encontros, mas esbarros e acidentes. “Acataria sua espontaneidade de querer ser o que não se é (para só aí ser).” Ocorre a desfragmentação do sujeito. Não há uma casa para centrar o repouso.
A velocidade é identificada pelo ininterrupto deslizar. Algo sempre escapa, empurra para frente, impede a reprise. É um movimento que não aceita marcha à ré, um “arrastar contínuo” pela dispersiva multidão. Os versos de Meditação à beira da morte concentram as principais virtudes do conjunto, uma visada filosófica sobre o trivial e o excesso de memória que nos distrai. “Apenas o sopro,/ último reduto que ainda me resta, resiste/ na tensão do que falo, no negativo de minha própria voz./ Só terei o esquecimento de mim, esperando esquecer/ até o esquecimento…”
Pressente-se uma lírica que se afirma pela negação, com a absorção de expressões populares como “me inclui fora dessa”, “vaso ruim não quebra” e “mostrar pra essa gente como é que se faz”. As “metáforas mortas” — os ditos folclóricos — intercalam as metáforas vivas e pessoais, fortalecendo os instantes de revelação.
Pucheu diz a metade do que ambicionava proclamar, deixando a impressão de que as palavras não foram capazes de exprimir o que desejava. É uma deliberada inconclusão. “As palavras me fogem.” Refratário à idealização, sugere, incita e provoca o leitor, esperando sua reação. “Não vivemos da melhor maneira: mas da maneira possível.”