O poema O lutador, do livro José, de Carlos Drummond de Andrade, inicia-se com os versos: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal nasce a manhã”. Casa entre vértebras, de Wesley Peres, dramatiza, ou melhor, radicaliza a perspectiva de poeta lutador incansável e fascinado pelo seu sedutor objeto de desejo: a palavra. Trata-se de um romance, nada convencional, construído por fragmentos poéticos em forma de prosa, no qual um narrador, quase sujeito lírico, “ensaia” uma biografia afetiva dirigida a um outro, definido, às vezes, como Ana, a mulher amada, exigente e inatingível. Outras vezes, esse outro sugere seus próprios fantasmas, eus múltiplos e difusos que se insinuam como interlocutores.
Cada um dos seus 163 fragmentos pode ser lido isoladamente, enquanto pequenos poemas. Estes utilizam elementos recorrentes como noite, vento, passado, presente, tempo, infância, loucura, silêncios, vazios, corpo, espiritualidade, Deus, deuses, demônios, casa, vida e morte. Entretanto, a maneira como é construído, o texto aponta para uma fruição, se não tranqüila, pelo menos instigante e saborosa das relações estabelecidas entre esses elementos que permeiam a narrativa.
A narratividade do texto é muito delicada e específica. Isto porque tem como eixo a subjetividade de alguém que pretende, através de uma carta, contar-se, montar uma trama na qual lembranças, memória, busca de sentidos, desejos e delírios sejam cartografados, mapeados, pontuados entre espaços e tempos da memória e do presente. Em última instância, além disso, esse sujeito busca construir um “sendo”, como elemento central de toda história. Um “sendo” escorregadio e marcado por presenças e ausências, tagarelices e silêncios, contradições e assertividades em seus paradoxos. Daí a predominância da tônica lírica sobre a dramática que, convencionalmente, exige-se de um romance. Esse padrão é transgredido na medida em que a tensão não é estabelecida sobre a ação seqüencial clara de personagens que se movimentam, num tempo e num espaço definidos. Apesar de romper com o padrão de narrativa dramática centrada num enredo linear, a alternativa encontrada pelo autor não é o que se poderia chamar de original. Esta é uma questão que apesar de não ser relevante para orientação da leitura, ou julgamento crítico da escrita, serve para aproximar, segundo alguns críticos, Wesley de outros autores que trabalharam seus romances dentro dessa perspectiva, desde Clarice Lispector, por exemplo, até outros autores contemporâneos.
Em linhas gerais, longe de pretender inaugurar um novo modo de se dizer, o autor de Casa entre vértebras coloca-se dentro de um campo da tradição modernista, em suas manifestações contemporâneas, que põe em xeque tanto a concepção de gêneros literários estanques, quanto as de sujeito cartesiano, racionalmente centrado em si mesmo, com uma identidade fixa. A luta com as palavras e o dizer dessa subjetividade também passam pela discussão da crise de representação dos diferentes cenários em que o homem atua e se movimenta para se constituir, questão esta formulada por muitos autores desse início de século. O dizer-se é realizado pelo esforço compulsivo de uma fala intercalada por silêncios, que são pausas necessárias para o “ensaio” de uma escrita que, volta e meia, coloca-se como impossibilidade de criar sentidos. É quando a voz narrativa interrompe a compulsão de dizer e nos surpreende com um “Não, não é bem isso…” Então o que é? Será uma inferência intertextual ao conto Cenários, de Sérgio Sant’Anna? Ou será apenas uma coincidência de perspectiva temática ou problemática da narrativa contemporânea? Seja lá o que for, tudo leva a crer que a história presente desse sujeito só pode ser contada dentro da precariedade da linguagem, que inerentemente traça seus enganos e armadilhas. Esse discurso sempre arredio, constituído como a linguagem dos sonhos, da loucura e do inconsciente, longe de configurar uma verdade sobre o sujeito que se diz, apresenta fragmentos e significantes, que se lançam em significados múltiplos, deslocados no tempo, de parciais e precários sentidos.
Sísifo
O único personagem no romance a ter um perfil esboçado é o narrador. O eixo de sua ação reside na luta com as palavras que o mobiliza a delinear o traçado de uma cartografia afetiva. Tarefa, muitas vezes, sísifa, como afirma o personagem. Sísifo fora condenado a arrastar uma pedra imensa até o pico de um monte, para quando estivesse quase chegando, vê-la despencando ribanceira abaixo, tendo que repetir o evento infinitamente. Como no mito grego, recai sobre o narrador a maldição de um trabalho exaustivo, interminável e jamais concluído, mas compulsivo e permanente em sua busca de se saber, de se dizer.
Contudo, a recorrência de algumas palavras, imagens e metáforas não implica a repetição pura e, simplesmente, redundante. A composição ganha novos significados dependendo do momento em que essas imagens surgem e do lugar que ocupam em cada fragmento do enunciado. Assim, a casa e o corpo humano se estruturam como vértebras que sustentam o corpo textual e garantem fios norteadores de sentidos, que se perdem e se encontram como possibilidade de dizer o indizível do discurso de si mesmo e do outro ou outros que se refletem nos cacos de espelhos em fragmentos de vida e de memória.
“Narrar-me, isso eu faço construindo o meu silêncio, empalavro-me… o corpo adensa, o corpo se torna mais corpo, impossível qualquer trama fora dele.” Impossível qualquer leitura fora da leitura desse corpo, que se constitui não só como metáfora, metonímia ou lugar de simbologias, mas é a própria casa do homem que o habita, com ele muitas vezes confundido, com ele interligado por suas vértebras, espaços mínimos de inter-relação e interlocução.
O sujeito que se conta afirma-se como alguém que prefere “viver sintaticamente, deixar as vias semânticas em teias”. Não é à toa a presença de uma aranha pela casa e pelas paredes da memória da infância a atormentar seus dias. Não é gratuita “essa obsessão por espaços dentro de outros espaços, daí talvez….” o seu “fascínio por estar no entre um e outro espelho,…” a sua “paixão por ler a textura do corpo sem buscar síntese”. Fala por vezes da necessidade e relativa capacidade de estabelecer na vida alguma ordem, alguma racionalidade sobre o caos de silêncios e vazios de sentidos, ou seus excessos e suas teias. Gosta ou prefere “viver sintaticamente como um conjunto de vértebras…”, mas apenas constrói sua casa entre vértebras. Dessa sintaxe só lhe resta a insegurança do entre. Mas é aí que se move, se insere, se inscreve, se escreve enquanto corpo, enquanto sujeito de uma história em construção ou em ruínas de um passado presente nas paredes, nos guardados das gavetas. Situa-se entre a necessidade de ordem e arrumação e a evidência do caos e do absurdo onírico da loucura e da linguagem poética.
A casa e o corpo, portanto, constituem-se para além de seu conteúdo semântico e de múltiplos significados, como elementos que permitem a construção sintática do romance. São as vértebras desse corpo textual fragilizado e, ao mesmo tempo, fortalecido pelas vias semânticas em teias. Enquanto a casa é o dentro que guarda o mistério, anuncia um fora que amedronta. O mundo lá fora, dentro dele a casa, dentro da casa o quarto, dentro do quarto paredes e gavetas, dentro das gavetas os guardados esquecidos ou buscados no fundo da memória e do tempo… Dentro de cada um desses espaços há um homem deslocado, inadequado, apaixonado e enlouquecido “sendo”…, tentando se dizer, contradizendo-se, preso entre as vértebras de uma linguagem arredia que mais engana do que esclarece. A casa é um modo de se dizer, o corpo é um modo de se escrever, de se fazer livro, de se deixar ler e de ler o mundo de dentro, de dentro do dentro, de fora de dentro da casa e da vida. E se há algum enigma, ele é “respirado com a pele, com os ossos com as palavras”. “A palavra é a pedra que Sísifo tanto empurra“… Contar-se, neste sentido, é inventariar as perdas e os ganhos, é “inventar” e “ar” em seus medos e vazios, já que a partir das fraturas, “essa dimensão de enlaces é o ponto comum entre a vida e a morte”. Narrar-se é a luta mais vã, entanto… o poeta luta corpo a corpo entre a pedra e a pele, vértebras e poesia, vida e morte. “…e as horas revestidas de demônios na velocidade de não ser, e a nau de meus olhos que grafa, nas paredes do meu corpo, espaços orvalhados de algum peixe engolindo paisagens arcaicas”.