Manoel de Barros vem sofrendo um linchamento em função da qualidade de seus últimos livros. O que está acontecendo? Depois de ser exaltado, passa pelo corredor polonês entre tapas e arranhões. Quem mudou: a crítica ou o autor?
Respeito não é sinônimo de complacência. O autor de Mato Grosso está completando 65 anos dedicados à literatura, feito raro na poesia brasileira. Desde 1937, com Poemas concebidos sem pecado, foram 16 livros, sempre em atividade, com destaque para Gramática expositiva do chão, Arranjos para assobio e Matéria de poesia. Criou um mundo particular, de efusões líricas, da cumplicidade e das descobertas verbais. Aborda um material caro à Guimarães Rosa e Raul Bopp: a efervescência da natureza, representada na captação dos devaneios da mata, da crescente humanização dos animais e do registro deslumbrado dos hábitos da anhuma, dos pacus, das graxas, do beija-flor, entre outros. É uma das vozes singulares da produção contemporânea. Trata-se de um modernista atrasado, um dos últimos sobreviventes de uma linhagem que promovia o desmantelamento gramatical para subverter a ordem e evidenciar a riqueza popular da fala. Com razão, criou uma legião de admiradores, sensibilizados pela condução de uma vida contemplativa, ociosa e menos rigorosa.
Se é inquestionável a importância de Manoel de Barros para arejar o hermetismo da poesia brasileira, é discutível agora seu papel de inovador. O formalismo que combatia antes é o que vem defendendo no momento. Transformou-se gradualmente seu estilo em grife, sua simplicidade em simplificação.
O lançamento de Tratado geral das grandezas do ínfimo chega ao mercado em edição caprichada e sedutora. O título do livro já estava presente no O livro das ignorãças (1993), o que evidencia uma retomada da produção anterior. Manoel de Barros não lança novo livro desde 1989. As obras publicadas depois dessa fase são involuntariamente antologias. O escritor repete metáforas, recicla ensinamentos e proclama aforismos de seu material passado, como que apontando um esgotamento dos recursos naturais. Acredito que Barros deixou de inventar para se ler, deixou de criar para fazer sua teoria crítica em meios aos poemas.
Tratado geral das grandezas do ínfimo mais explica o poema do que o realiza. É perceptível nos cacoetes do autor em definir o que o leitor precisa para chegar ao grau poético (como se isso fosse possível mensurar). Ocorre de saída a nomeação dos sete sintomas para a disfunção lírica, como um manu(e)l de bordo. O escritor aponta instruções de como a leitura deve ser processada, retirando a naturalidade da poesia e a deixando artificial com seus ensaios embutidos:
“1- Aceitação da inércia para dar movimento às palavras.
2- Vocação para explorar os mistérios irracionais
3- Percepção de contigüidades anômalas entre verbos e substantivos.
4- Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.
5- Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.
6- Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra
7- Mania de comparecer aos próprios desencontros.”
O autor pede a exploração da irracionalidade, mas destaca tópicos denunciando a conscientização do poema. A exposição programática de mandamentos contraria a espontaneidade. Finge ser um poeta intuitivo e irracional pelo tema, porém é um poeta cerebral pela forma, movido a regras e restrições.
É de se perguntar: ou o escritor subestima o leitor ou o superestima? Poema não se explica. Mas em todo instante do livro ele é explicado, seja quando o autor sentencia o que são os elementos do cisco, seja quando justifica uma nomeação como Bandarra entre parênteses. Não são fatos isolados. No fragmento de A pedra, figura uma questão de múltipla escolha:
“Há outros privilégios de ser pedra:
a – Eu irrito o silêncio dos insetos.
b – Sou batido de luar nas solitudes.
c – Tomo banho de orvalho de manhã
d – E o sol me cumprimenta por primeiro.”
O instrumento de enumerar ou classificar é usado até a exaustão, grafando a natureza de relatório, ata, inventário. A poética barrosa explicita o explícito, dando lições de moral e de juízo. A sensação é que o autor não se ausenta do poema para que seja território de livre acesso do leitor. Não consegue abandonar seu livro. Exerce o papel de guia turístico, acompanhando a viagem, importunando, chamando atenção, relevando certas passagens e obscurecendo outras. Barros não executa o que promete no conteúdo. Concebe o poema como um ato de inspiração. Entretanto, exige constantemente uma transpiração. Intelectualiza sua experiência poética, exercendo a pedagogia do torto. Defende a tese de que o prefixo salva a palavra do clichê: objeto é desobjeto, utensílio é inutensílio e assim por diante.
Como o escritor canonizou sua nomenclatura e estratégias de persuasão, ocorre a rotinização da linguagem que se pretendia original. De tanto trocar a função de adjetivos para advérbios e de substantivos para verbos, o recurso deixou de causar estranhamento. Barros virou um viciado em suas elaborações frasais.
Tudo é meticulosamente pesado e pensado para uma catequese. É o que se nota no Tributo a J. G. Rosa:
“Passarinho parou de cantar.
Esta é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J. G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.”
O que temos é alguém ensinando, no auge da sabedoria, o que é e o que não é poesia. As lições são pormenorizadas ao extremo, redundando em dogmas. É uma postura professoral que parece dizer: faça como Rosa, faça como Barros. Só que o excesso de claridade, o desvelamento total de uma imagem e o pendor discursivo corrompem o mistério da afirmação de Rosa, extraído do conto A Menina de Lá, de Primeiras Estórias.
Durante o caminho, Manoel de Barros premedita os tropeços, na maioria das vezes se desculpando e buscando a indulgência sentimental.
“Sou fraco para elogios.”
“A poesia está guardada nas palavras — é tudo o que sei.”
“Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.”
“Eu só queria construir nadeiras para botar nas minhas palavras.”
Seu lado ascético consiste em se desvalorizar como poeta para valorizar o poema. Rebaixa-se para ser elogiado. Seu enfoque é confessional e religioso, da primeira pessoa que se mortifica. É um blefe: aceita de forma passiva as limitações porque as percebe como virtudes.
Ao mesmo tempo em que afirma nada saber, afirma tudo conhecer mediante uma pose erudita. De repente, no meio de uma situação natural, junto de personagens folclóricos e autodidatas como Bernardo, Sabastião e Joaquim Sapé, surgem citações como Roland Barthes, Johann Sebastian Bach, Antonio Vieira, João Guimarães Rosa e Jacques Lacan.
Barros larga seu extenso conhecimento ao bel-prazer, quebrando a fruição. Os autores arrolados funcionam como links que nos levam para fora do poema.
“O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala
a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação
dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
contemplação dos restos.
E Barthes contemplava: contemplar os restos é
narcisismo.”
O paradoxo é que sua poesia prega o engrandecimento da ignorância (“Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil./Fiquei emocionado e chorei.”), mas se utiliza da erudição para difundi-la.
Conclui-se que o Pantanal apresentado não é o Pantanal verdadeiro, e sim um pantanal que se origina das leituras de Barros. Suas raízes crescem em estufa literária. Serve-se da cultura popular para fazer uma cultura erudita. O que prova o grande número de referências e citações de autores, músicos, pintores e cineastas, inseridos forçosamente em textos sobre os trastes e as figuras do abandono.
A aparência de que o escritor não tem pretensões é logo desfeita. Ele cita sua bibliografia para mostrar que suas observações bebem na melhor das tradições e que têm alto conceito. Sua ambição é a vaidade da humildade, a arrogância das miudezas, exemplificado no oximoro “grandezas do ínfimo”.
Manoel de Barros evidentemente não está escrevendo para o homem comum de sua região, que teria dificuldades em acompanhar suas meditações estéticas e sua bibliografia básica. A intertextualidade é prodigiosa, constituindo uma enciclopédia à paisana. Escreve para quem tem um mínimo suporte de leituras e de vivência literária, não para quem tem necessariamente vivências com a natureza.
Chega-se a uma conclusão: os temas como o nada, o entulho e o imprestável são de ordem teológica e servem para instrumentalizar a teoria crítica que Barros pratica em sua obra. Sua poesia descende do dicionário. É o que se constata no poema Ascensão:
“Como não ascender ainda mais na ausência de voz?
(Ausência de voz é infantia, com t, em latim).”
O glossário em latim cheira a gratuidade. Não colabora ao desdobramento do núcleo temático, não muda nada em relação ao verso anterior. É uma intervenção aleatória e abusiva, travando o texto com pormenores extra-poéticos.
O caráter lírico é o da prosa, frases curtas, praticamente sem rimas e com paradas bruscas. O emprego do etc. reforça a descontinuidade rítmica, como que desvalorizando o que foi relatado anteriormente. Na verdade, seus poemas são contos, encadeados por intenções poéticas. Tal o pensamento circular de uma criança, repete o início da frase anterior para não perder o raciocínio.
“Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo.”
O escritor não somente tematizou a infância, mas infantilizou sua linguagem poética. Ao invés da evocação de uma idade e de uma determinada faixa etária, tem-se a pressentificação: falar como. As palavras seriam brinquedos verbais, manuseados e destruídos com freqüência. Sua tarefa fundamenta-se na montagem de frases que aparente uma inocência do mundo. Reproduz a realidade oral e fragmentária de uma criança no momento em que ela erra a língua. Esse condicionamento responde a mais uma contradição: o autor pretende falar como uma criança, mas não renuncia em exibir os pressupostos teóricos de um adulto (suas citações e referências).
Barros tem alardeado os truques e banalizado suas reflexões. O possível encantamento se perde com a metalinguagem. Mesmo proclamando que não cabe medir a importância das coisas, empreende uma escala de valor: os passarinhos são mais importantes do que os senadores, assim como o sabiá mais importante do que a Cordilheira dos Andes.
Apesar dos antecedentes autorais, as analogias são simplistas. O poético cede espaço ao pitoresco, ao excêntrico e ao exótico. Em escrita deslumbrada, que abusa da exclamação e das reticências, Barros generaliza, transformando o varejo (os achados) em atacado, pouco percebendo o que é frase de efeito ou poesia, trocadilho ou lirismo: “A gente só chega ao fim quando o fim chega! Então pra que atropelar?”