A literatura como transeunte em uma cidade. A literatura encontrada em locais como um supermercado ou em atos como beber uma xícara de chá. A literatura intrínseca em gestos, olhares e atitudes banais do cotidiano. É assim que os contos da prestigiada ficcionista escocesa Ali Smith se apresentam, histórias na medida em forma e conteúdo.
Despretensiosos e dotados de uma leveza que impressiona pelas referências que carregam, do calibre de Borges, Benjamin, Hemingway, Kafka, Mansfield e Todorov, os textos de Smith não cairiam melhor em outra roupagem que não o conto. Experiente e habitué do gênero, ela tem tanta segurança disso que até “brinca” com o assunto, numa espécie de interlocução com esses autores.
Figura marcada em short lists de premiações como o Booker e o Orange Prize, Smith, que venceu o Whitbread Novel Award na categoria Romance do Ano, por outro lado não dá mole para o leitor. Inquietante, apesar de simples, sua linguagem transita pela crítica literária, dramaturgia, música clássica, jazz, cinema e filosofia, e faz o leitor se mexer, mirabolar cenas e pensamentos que interagem com narrativas como Fidélio e Bess e Sem saída.
Filigranas de impossibilidade e estranhamento
Em A criança, uma Marilyn Monroe desglamourizada — de estrela do cinema para atendente de supermercado. Com um humor ácido, o conto projeta na figura da criança que surge em seu carrinho de compras a impossibilidade, o estranhamento, a desnaturalização do que se vê em relação ao que se é. Encantadora aos olhos dos clientes do estabelecimento, incomoda por suas falas ousadas e nada verborrágicas a Smith narradora-personagem, que assume por instantes o papel de mãe.
No conto N’água, um fórum íntimo entre uma personagem madura e seu “eu de catorze anos”, numa transposição de realidade e tempo, traz à tona instantâneos vividos e questões mal-resolvidas, até então adormecidas.
Várias “personas”
Ali Smith se veste em “personas” em cada um de seus contos, interagindo ou observando à distância seus personagens. As histórias assumem um tom referencial, informativo, por vezes jornalístico, mas não menos literário, sobretudo quando Smith narra um conto dentro de outro.
A própria estrutura do livro denota esse cuidado. São doze histórias, podendo ser divididas em três partes, terminando cada uma com os contos A terceira pessoa — “um par de olhos” em que o fim do amor de um casal deve ter a ver com o ato de cortar vegetais e a morte aparece como um lugar sem medo —; seguido de A segunda pessoa — na companhia de Ella Fitzgerald —, fechando com A primeira pessoa, assim, em ordem decrescente, como se o próprio “eu” não significasse grande coisa, como o presente.
Camadas
A criação literária de Smith se apresenta em camadas, como matrioskas que se sobrepõem. Uma história envolve outra.
Em Presente, personagens questionam em algum momento dados que a narradora-personagem traz ao conto, por não acompanharem seu trânsito por portas narrativas distintas. Já em Contando um conto, a rotina familiar é discutida por duas amigas adolescentes e entremeada por uma descrição jornalística da morte da rainha escocesa Maria Stuart, que casa fortuitamente com a loucura-ausência da figura da mãe.
Esta seleta de contos é marcada por textos meta-realistas, na contramão da hiper-realidade contemporânea. Ali Smith recorre à escritora americana Grace Paley, que também se notabilizou com seus contos, para parafrasear que os “contos são sobre a própria vida, que surge em diálogos e drama, vida que é breve, ao contrário da arte, que é longa”.