Entre oito e oitenta

Na prosa e no verso, livros de Miguel Sanches Neto são medianos
Miguel Sanches Neto por Hugo Harada
01/05/2011

A crítica literária, quando realizada com seriedade, é uma tarefa bastante árdua, como o são todos os ofícios desempenhados com afinco e sinceridade. Mas, por paradoxal que pareça, estando o crítico diante de extremos — o livro grandioso ou o péssimo, que ele sequer considera literário —, sua tarefa analítica (se não podemos empregar aqui o termo “facilidade”, para que não façamos uma pecaminosa contradição) ganha certo conforto, pois em geral são numerosos os motivos que provocam em nós a sensação do endosso ou da repulsa.

No primeiro caso, o estudioso inevitavelmente contamina seu juízo pela paixão (sem a qual não há crítica apaixonante), no entender dele regalada pela obra de excelência, e a partir disso elabora um discurso em comunhão com o que foi lido; no segundo, rechaça-se tudo o que se lhe apresenta em desacordo com as verdades que carrega dentro de si, e nesse caso a paixão assume uma tonalidade diversa, e, grávida de gravidade, grava-se nas páginas com as tintas negras da reprovação. Tudo muito subjetivo, é verdade, mas a objetividade — que (acertadamente) se cobra da crítica literária, porém em muitos momentos solicitando (equivocadamente) a expulsão da pessoalidade — a objetividade, dizia eu, e seus mecanismos de legitimação nascem sempre em algum espaço particular, pois nada do que pertence ao conhecimento humano brota em árvores ou é extraído de alguma pedra.

Mas os livros medianos parecem mais desconfortáveis para a crítica precisamente por se situarem numa terceira via, a qual, neste contexto, não costuma ser muito fértil, visto não ser tão curta a ponto de inviabilizar o trânsito, nem tão longa a desafiar o horizonte e nos impulsionar ao deslocamento. Fique claro que aqui não se defendem nocivas dicotomias, pois seria absolutamente danoso caso a crítica se limitasse à etiquetação do que é bom e do que é ruim, de maneira direta e simples, mas a vida por vezes coloca-nos diante de situações que nos inspiram um inevitável “ou oito ou oitenta”.

Esta é a impressão que nos causam os mais recentes livros de Miguel Sanches Neto: Então você quer ser escritor? (de contos) e Alugo palavras (de poemas).

Em ambos os casos, o autor nunca escreve de forma rasteira; não cede aos azulejos frios da abstração nem se embala pela chapa quente dos tiroteios neonaturalistas; também não decai na gozação banalizada que se acredita transgressora nem se confina na seriedade experimental refratária a qualquer espontaneidade. Tanto na prosa quanto no verso, o paranaense não se submete aos receituários da época, revelando um trabalho elaborado com idoneidade e autonomia. No entanto, mesmo a evitação dos vícios somada a essas virtudes não conferem às peças em questão maior expressividade.

Narração de estórias
O volume de contos dá exemplo mais preciso do que estamos a apontar. Então você quer ser escritor? é composto por 16 narrativas, as quais desautorizam nossas expectativas de que por detrás do rótulo de “prosa de ficção” esconder-se-ia um tratado narcisista de concepções artísticas em nome da emancipação da literatura contemporânea (as expectativas ficam mais plausíveis porque Miguel Sanches é professor universitário de Literatura Brasileira). Em decorrência dessa atitude voluntária do autor de esquivar sua prosa do exagero metadiscursivo, percebe-se um livro pautado pelo princípio básico, mas não primário, da narração de estórias de caráter cotidiano com algum fator distintivo. E nisso o volume dota-se de frescor, pois ainda vemos que a prosa de ficção pode continuar a falar do que não necessariamente nos pertence, mas está bem a nosso lado, como o menino que custa a perceber a morte do pai, o jovem que desaparece de sua cidade após uma desilusão amorosa e os moleques que se aventuram para formar um time de futebol.

Mas os temas e a figuração (em sentido contrário à abstração) não bastam para fazer com que um texto possa ser considerado artístico. E aí se vê que se o autor acertou ao proibir a presença homogênea de ruminações teóricas, ele errou ao não alicerçar sua forma narrativa sobre técnicas de composição que garantiriam ao conjunto maior densidade estética. Aqui se buscou negar o caminho da literatura dissociada da vida, mas se falou da vida sem a dicção mais típica da literatura, e por isso não parece que se tenha alcançado nem uma nem outra esfera.

O texto que abre o livro — Sangue — aponta para uma grave doença da época presente: a indiferença diante das tragédias que enchem a pauta de programas televisivos e os olhos de seus espectadores que, indecisos entre a comiseração e o fascínio, aguardam sequiosos pelo momento de levarem suas vantagens. No curto relato, narra-se um grave acidente rodoviário envolvendo um carro com quatro jovens e um caminhão transportador de repolhos. O acidente é presenciado por idosos que viajam num ônibus rumo a Aparecida do Norte, no interior de São Paulo, os quais descem para assistir de perto e atuarem como coadjuvantes no bárbaro espetáculo:

Então percebi que as pessoas guardavam repolhos no compartimento das malas. Iriam até Aparecida do Norte e só voltariam para casa dois dias depois, mas saqueavam a carga do caminhão. Meu vizinho, um senhor de rosto obscenamente bronzeado, ainda me olhava, esperando que eu agradecesse.

Algumas das incursões feitas por Miguel Sanches na seara da crônica dão ao livro firme poder de observação do tempo em que se insere, conforme demonstra o conto citado. Porém a contemplação mais ampla, alvejando o homem e alguns de seus dilemas, independentes do tempo, mostra-se escassa justamente por ser desprovida da penetração aguçada no interior dos personagens, os quais vivenciam situações de grande tensão emotiva, as quais são relatadas com escassa tensão narrativa.

Mesmo em seus melhores lances, como em Redentor, protagonizado por um homem típico das convenções mas algo atormentado por seus desejos homossexuais, a construção do personagem e a análise de seus pensamentos e ações não exploram as procelas sentimentais que se poderiam esperar de alguém com tal perfil. Numa noite na Zona Sul do Rio, Pedro, homem casado e que veio à cidade para um congresso de seu trabalho, leva um travesti para seu quarto, mas interrompe subitamente o ato sexual a que havia dado início. A cena inspira forte dramaticidade, mas é amenamente descrita pelo narrador:

Pedro foi ao banheiro, tirou o preservativo com papel higiênico e tomou um banho rápido. Ela entrou no banheiro só de saia e sandália, para arrumar a peruca no espelho. Então ele viu a imagem de Cristo tatuada na barriga, um Cristo meio selvagem. Pedro teve vontade de chorar.

Noutro conto, Para o seu bem, cuja atmosfera agônica tem o sangue social, a ausência de desdobramento narrativo (o qual nos aproxima da complexidade anímica do personagem, levando-nos a conhecer e desconhecer o homem) deixa artificial a “conversão” do pacato menino Fábio Júnior ao crime, visto que tudo se processa de modo imediato e, por isso, inverossímil demais: o rapaz fala uma vez com um traficante; o traficante vai a casa dele, e então ele fuma maconha pela primeira vez; bem adiante, Fábio Júnior já consome drogas mais pesadas, e num trajeto percorrido por velocista olímpico, torna-se, a um só tempo, traficante e ladrão (que se dá ao luxo de ir a um culto evangélico desacompanhado sem temer qualquer perseguição): “Estou com dinheiro, compro e vendo droga agora. Tive que matar o [traficante] Pânico porque ele estava dormindo com minha menina, e fiquei com os clientes dele. Todos têm medo do menino Júnior, o vulgo pegou mesmo”.

Esta é a tônica geral do livro, a comprovar um surpreendente antagonismo: a literatura de vocação mimética, cujo pressuposto centra-se na representação da realidade, é justamente a que costuma se afastar do real que pretende abraçar com seus laços pragmáticos. E no caso específico de nossos convivas de tempo e de país, muito do que se publica forma uma literatura sem interesse ou capacidade de edificar-se pelo acúmulo do que nossa ainda jovem mas vigorosa tradição legou como valiosos ensinamentos.

Poesia
Fato semelhante ocorre em Alugo palavras, sexto livro de poemas do autor de Então você quer ser escritor?. A considerável produção de Miguel Sanches Neto na escrita em verso não nos permite supor que o novo volume seja mero desenfado ou passeio intelectual do prosador em seus momentos de folga; mas, por outro lado, vê-se de fato que a prática ainda não é sinônimo de primor.

Apesar de dividido em quatro partes, há no livro um fio coesivo manifestado pela confissão e pela memória, num lirismo ao qual se associam passagens metalingüísticas. Aqui, mais uma vez, a despeito de não nadar nas ondas de seus confrades hodiernos, a escrita de Miguel Sanches situa-se num patamar além dos que nada têm a dizer e aquém dos que dizem muito e dizem bem: “Maria da Glória/ por que foste embora?// Maria das Dores/ que tal se te fores? // Maria dos Anjos,/ escute o meu pranto.// Maria das Neves, por que não te atreves?// Maria da Penha, largue tudo e venha” (Todas as Marias).

Mas no gênero lírico o autor paranaense realiza com alguma freqüência feitos de alcance mais considerável, especialmente quando o discurso poupa-se das palavras para aprofundar-se na reflexão e na densidade imagética: “Acolhes tudo que brilha./ O espelho dos olhos/ é tua única mobília” (Adendo quase romântico).

E o grande salto desta poética ocorre quando se mesclam os recursos pelos quais o texto tem acesso à morada da poesia, ou dela é proveniente. Ao formar um amálgama de engenho discursivo, densidade reflexiva e carga emotiva, cujo somatório tem o poder de inaugurar novos sentidos, o autor põe no livro e no mundo a pincelada forte de suas impressões digitais, as quais colocam a esmo tudo o que se enquadrava no meio e no mesmo:

FAMÍLIA

Uma toalha por dia
pra toda a família.

Primeiro, seca-se o pai,
é quem trabalha mais.

A mãe sempre o secunda,
e a toalha já se inunda.

A irmã vem logo depois,
limpo e vívido é seu corpo.

Aos moleques imundos,
resta o tecido todo úmido.

Em outra toalha, pequena,
secam o rosto e a cabeça.

E neste ritual de higiene
há algo de Santa Ceia.

É sempre mais difícil o trabalho de autores lançados à narrativa e à poesia simultaneamente. O caso de Miguel Sanches Neto nos faz supor que o vigor dessas duas estradas pode se dar a partir da unificação dos caminhos, em contínua alteração das alteridades.

Então você quer ser escritor?
Miguel Sanches Neto
Record
224 págs
Alugo palavras
Miguel Sanches Neto
Edelbra
109 págs.
Miguel Sanches Neto
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho