“[…] o maior romance histórico que jamais se escreveu”. É com estas palavras que o crítico Otto Maria Carpeaux reconhece o valor do romance Os noivos (I promessi sposi), de Alessandro Manzoni, que acaba de ser relançado com tradução diretamente do italiano e notas (muito bem cuidadas) a cargo de Francisco Degani. Esta nova edição de capa dura traz ainda outro texto, História da coluna infame, cuja trama, como a de Os noivos, perpassa pela questão da peste negra que na Milão do século 17 dizimou quase a metade da população. A peste, em um momento histórico e cultural diferente, é o pretexto para outro clássico da literatura italiana, o Decamerão, de Giovanni Boccaccio. Tanto neste último quanto na obra manzoniana, a estrutura da(s) moldura(s) está presente: a peste, um fato histórico, serve de moldura para toda a trama funcionar.
O romance de Manzoni, que marca o início da moderna narrativa italiana, depois de algumas versões — ele foi publicado primeiramente em 1827 e revisado em 1940 pelo autor —, traz definitivamente o título Os noivos e um subtítulo: História milanesa do século 17 descoberta e reescrita por Alessandro Manzoni. Tal subtítulo, desde o início colocado para o leitor mais atento, nos remete ao suposto documento anônimo do século 17, encontrado casualmente pelo autor. Na introdução, Manzoni explica como encontrou o manuscrito e se propõe a tarefa de transcrever/contar aquela história: “‘Mas, quando eu tiver terminado o heróico trabalho de transcrever essa história desse apagado e esfarrapado manuscrito, e a tiver dado, como se costuma dizer, à luz, encontrar-se-á alguém que se dê ao trabalho de lê-la?’ […] Porém, ao fechar o manuscrito para guardá-lo, não me agradava que uma história tão bonita devesse permanecer desconhecida, porque, como história, pode ser que o leitor tenha outra opinião, mas me parecera bonita, aliás, muito bonita. Por que não seria possível, pensei, tomar a seqüência dos fatos desse manuscrito e reescrever?”. Há um pacto de leitura que vai sendo estabelecido, ao mesmo tempo em que a verdade histórica se mescla, numa trama híbrida, com a invenção.
A tarefa de reescritura não pode ser automática e justamente por isso Manzoni abre um canal de comunicação com seu possível leitor, colocando algumas questões sobre o processo; aqui, central é a questão da língua: “Mas, rejeitando como intolerável o modo de escrever de nosso autor, por qual modo nós o substituímos? Este é o ponto”. Portanto, em qual língua reescrever essa história que lhe parecera bonita? Uma pergunta que na história da língua e da cultura italiana pode reconduzir à fatídica “questione della lingua”, que está presente desde Dante Alighieri, passando por Pietro Bembo, no Renascimento, até o século 20, com Pasolini e outros escritores.
A emblemática estratégia da descoberta do manuscrito que incita a curiosidade de quem o encontrou e que, por sua vez, deseja compartilhá-lo com outros possíveis leitores foi recuperada pelo best-seller de Umberto Eco, publicado nos anos 1980, O nome da Rosa. Um exemplo simples de como a literatura está sempre em movimento, não é nunca estática, está em diálogo e operando, mesmo quando as operações não são tão claras ou tão facilmente identificáveis.
Retorno ao passado
Em Os noivos, Manzoni dá voz e espaço a dois jovens camponeses que pretendem se casar, mas passam a ser “impedidos” por um senhor da região, Don Rodrigo, que possui uma rede (in)visível de agentes a seu favor, desde capangas até o padre, dom Abbondio, a figura de uma amarga autodegradação, e o advogado Azzecagarbugli, representante de uma violência cínica e cruel e da legislação que está a serviço do poder. Abbondio, contraponto de Fra Cristoforo, não realiza o casamento dos jovens camponeses por ter sido ameaçado por Don Rodrigo, e a justificativa dada é um impedimento legal (uma invenção) comunicado em latim. Claramente, os pretendentes ao altar não entendem nada, mas respeitam a autoridade da igreja e seu conhecimento. Aqui está posta uma das muitas questões do romance.
Renzo Tramaglino e Lucia Mondella, mas também Fra Cristoforo, são os heróis positivos, que enfrentam aventuras e desventuras em busca da realização do matrimônio. A trama que poderia ser reduzida à proibição do casamento é, na verdade, cheia e entremeada de intrigas, documentação histórica (é o grande romance histórico italiano), retratos de personagens tipificados e romances dentro do próprio romance.
É deixando de lado líricas do romance epistolar e de confissão que Manzoni se volta para as instâncias realistas da narrativa européia de Dom Quixote em diante, comportamento que produz e gera um profícuo alternar de registros, indo do cômico ao satírico e ao trágico, perfilando, assim, o romance burguês italiano.
A trama se passa, então, entre os anos de 1628 e 1630, dando conta de um conturbado período da história italiana: uma Itália obviamente não unificada, com o domínio dos espanhóis numa parte do norte. Uma volta ao passado para falar do presente? Sim, certamente. Operação também praticada, mais recentemente, pelo escritor siciliano Vincenzo Consolo em seus romances históricos, como Retábulo.
Equilíbrio perfeito
Um aspecto importante da obra é a polifonia. De fato, no texto manzoniano esta é muito harmônica e múltipla, conforme aponta Gian Mario Anselmi. A polifonia encobre, ao mesmo tempo em que revela, os muitos tons da obra: a palavra do poder; a palavra consoladora e terrível de um Deus bíblico (que consola mas também aterroriza); e, por fim, a palavra do narrador para com o leitor, marcada pela ironia, pelo lúdico, mas que existe só depois de o narrador ter passado por aquela barroca do manuscrito. O termo “polifonia” poderia ser ainda utilizado para pensar o fluxo, o movimento que aqui se estabelece — se quisermos, a intertextualidade — com outras obras: ao lado dos já mencionados Cervantes e Boccaccio podem ser lembrados Shakespeare e Walter Scott. Outro aspecto relevante, já assinalado na polifonia, que chamou a atenção de vários críticos é a questão da fé e a presença da Providência.
Os noivos é, sem dúvida, um romance diante do qual não se pode ficar indiferente. Francesco De Sanctis o exaltou e o fez símbolo do perfeito equilíbrio entre real e ideal, um exemplo e sintoma para o crítico de uma modernização da literatura italiana. Desde De Sanctis, muitas foram as leituras, como traz com precisão a professora Aurora Fornoni Bernardini no prefácio dessa nova tradução, montando um mosaico elucidativo para se entender melhor a obra de Manzoni quando coloca lado a lado as visões de Antonio Gramsci, Italo Calvino, Pier Paolo Pasolini, Carlo Emilio Gadda e Umberto Eco. Aurora Bernardini tem ainda o cuidado de trazer para o leitor brasileiro a história “pitoresca” das traduções desta obra no Brasil, percurso importante para se pensar também as relações culturais entre os dois países, basta lembrar que D. Pedro se correspondeu com e traduziu Manzoni (o poema Il cinque maggio). Tal caminhada pelas várias traduções enfatiza a relevância do presente trabalho de Francisco Degani, que, além de ser completo, traz todo um esforço de entender as expressões e os neologismos presentes no romance que provocaram alguns deslizes anteriores.