Se existisse uma categoria que pudesse abarcar a obra épica de Haruki Murakami, ela receberia a denominação de “mangá para adultos”. Observando de modo amplo e resumido, não passa de uma história macabra, com pitadas de ficção científica, alguns segredos e enigmas, recheada de muito erotismo e uma história de amor impossível originada na infância dos personagens. Mas é uma receita infalível.
1Q84 pode ser definido exatamente assim: um mangá gigante sem desenhos. Murakami não traz grandes reflexões, frases excepcionais ou parágrafos notáveis, mas consegue criar, a partir de uma história esdrúxula e que passa ao largo dos padrões do classicismo romanesco literário, um roteiro labiríntico que prende a atenção do leitor, a ponto de fazê-lo tentar roubar na alternância rígida dos capítulos (Aomame, Tengo, Aomame, Tengo, até o fim) ou pular páginas na tentativa de descobrir o resultado e diminuir o estado de tensão (quem nunca fez isso num policial de Agatha Christie?).
Escravo-leitor
Como qualquer bom suspense, 1Q84 poderia durar tanto quanto seu autor o queira: quem resolve é o dono dos fios invisíveis que tecem sua trama. Aqui é também onde Murakami desenvolve sua técnica com facilidade e maestria, muito embora a maioria de seus críticos mais ferozes o condene exatamente por isto: seu suspense é tão perfeito e gratuito que pode ser explorado — como uma série de episódios das HQs japonesas — por milhares de páginas, criando uma legião de escravos-leitores.
Murakami dá a receita de sua mágica para quem quiser seguir seus passos. A premissa: “A realidade é sempre única”, ou seja, não importa se a realidade é a que vivemos no mundo real ou a que vivenciamos nos livros, ela sempre gera efeitos verdadeiros sobre o ser humano. O modo de execução: “ficar em pé na encruzilhada do presente e olhar o passado com sinceridade; e escrever o futuro como se estivesse re-escrevendo o passado”. E sua finalidade, parafraseando Tchekhov, não é solucionar problemas, mas propô-los.
É dessa forma que o leitor é levado a uma dimensão paralela do ano de 1984, na qual um homem (Tengo) e uma mulher (Aomame) que tiveram um encontro único e fugaz na infância — mas eternamente marcante em suas vidas — poderão se encontrar, ou ao menos tangenciar suas histórias, outra vez.
Magnetismo
Tengo e Aomame são os protagonistas centrais. Solitários e com uma infância infeliz, quando eram discriminados pelos colegas, seguem separadamente suas vidas, até o momento em que aceitam convites incomuns.
Aomame, nascida no seio de uma família de Testemunhas de Jeová, torna-se praticante de artes marciais e assassina homens poderosos que praticam violência contra mulheres. Presa em um congestionamento monstruoso, aceita a sugestão do motorista de táxi e desce uma improvável escadaria no meio de uma auto-estrada.
Tengo, nascido em uma família na qual desconfia da paternidade de seu pai, um cobrador da transmissora de sinal de tevê a cabo, fracassa em quase todas as suas vocações. Mantém-se como professor de matemática e tenta se tornar um escritor, mas aceita o pedido do editor Komatsu: re-escrever o livro sinistro de uma menina disléxica de dezesste anos, Eriko Fukada (ou Fukaeri), que vem a ser filha do Líder da seita Sakigake, uma organização religiosa fanática e hermética.
A partir de então, as vidas de Tengo e Aomame serão comandadas por um magnetismo estranho proveniente do Povo Pequenino e das Crisálidas de Ar que eles constroem. Ou, como Murakami insinua, apenas parecem se atrair, enquanto dançam ao sabor da roda de desejos do Tibete: “Quando a roda gira, os valores e os sentimentos movimentam-se para cima e para baixo, resplandecendo e se ocultando na escuridão, mas o verdadeiro amor encontra-se firmemente no centro da roda, e por isso nunca se move”. A evidência de se estar no mundo paralelo da história de Fukaeri é a observação de duas luas no céu.
Jogando com o real
A crítica cruel do New York Times (A Tokyo with two moons with many more puzzles, que caracteriza o livro como “quase mil páginas em que nada acontece”) não parece intimidar as vendas do fenômeno literário de Murakami, nem no Japão, nem no resto do mundo. Talvez o crítico não esteja muito a par da estrutura narrativa dos mangás, ou teria matado a charada com relativa facilidade. A única coisa em que os críticos literários mais puristas acertam é que, lá pela metade do livro 1, uma pergunta insiste em martelar no subconsciente: “mas onde essa maluquice vai dar?”. No livro 2, felizmente, Murakami reassume as rédeas da narrativa e aumenta o grau de tensão e suspense, na medida em que revela alguns dos enigmas mantidos em segredo por todo o primeiro livro, facilitando o fluxo dos fatos.
Para além de Tengo e Aomame, há personagens bem explorados e outros que passam sem deixar maiores registros: as amigas de Aomame, Tamaki e Ayumi, os homens incógnitos com quem ela aliviava o estranho desejo sexual por carecas, o segurança Tamaru e a velha senhora que encomendava-lhe serviços de preparação física e de envio “para o outro lado” dos homens misóginos e abusadores de mulheres. Na parte de Tengo, além de Fukaeri, há o editor Komatsu, o professor Ebisuno, o assustador Ushikawa, sua namorada-casada Kyoko Yasuda e seu pai, Sr. Kawana.
A despeito da impossibilidade da história, os personagens é que lhe dão vida, pois são extremamente humanos: cozinham, sentem tédio, pesam-se na balança, deparam-se com questionamentos corriqueiros e encontram refúgio, respostas e referenciais nas diversas artes contemporâneas — e em artistas como George Orwell, Tchekhov, Stanley Kubrick, Dostoiévski, Janáček, Bach, Nat King Cole, Sonny & Cher — e outras referências do mundo real, assim como marcas de roupas, carros e chocolates.
O que encanta em Murakami são personagens que, como nós, se assombram com o imprevisível que sempre espreita para surpreender, que buscam algo em que se apoiar em uma realidade que tantas vezes parece irreal. Seu trunfo é, a despeito da ficção, trazer a identidade dos que precisam de um porto seguro, “algo para se proteger do vento” ou ainda para tentar se prevenir de uma viagem sem volta, como a do personagem do conto lido por Tengo (de autoria do próprio Murakami) que se perde irremediavelmente na “cidade dos gatos”. Murakami acerta em cheio. Assim como ler um livro que não tem um desfecho feliz ou que faça sentido, a vida real não deixa de ser uma viagem sem volta: uma vez que entramos nela, não encontramos um caminho de retorno para o mundo anterior.
Só li os livros 1 e 2, e lá se foram 808 páginas vencidas. É impossível concluir se Tengo e Aomame foram sugados para a ficção de Crisálida de Ar, ou se a história de Aomame é o romance que Tengo está escrevendo após a re-escritura de Crisálida, livro da Fukaeri. Se vou ler o livro 3? A resposta é sim. Como adolescentes que visitam as bancas de jornal, ficarei à espera da tradução do livro 3. Ainda que não traga respostas, ainda que as pontas da história não se unam no final.