Uma das maneiras de pensar as muitas vertentes da literatura contemporânea pode começar pelo gesto de reapropriação. Nele incluem-se diálogos literários em que a fabulação surge como leitura e reescritura, em textos que remetem a outras obras ou ficcionalizam personagens reais, entrecruzando tempos e espaços.
A produção literária marcada pela dobradiça entre criação e citação inclui Três camadas de noite, de Vanessa Barbara, relato ficcional articulado em uma sobreposição de três camadas, em que cada um dos estratos anuncia uma questão. A primeira, a de uma mãe na difícil condição pós-parto, enfrentando os desafios do puerpério, a amamentação e a privação de sono. Um segundo eixo abrange a depressão da personagem feminina e o agravamento dessa condição diante da pandemia do coronavírus, com direito a confinamento e pressões de toda ordem. O terceiro plano acontece no diálogo estabelecido pela protagonista-narradora com uma tradição literária de autores que vivenciaram tiveram a saúde mental abalada: Sylvia Plath, Clarice Lispector, Henry James e Franz Kafka. São interlocutores escolhidos a dedo, como quem abre um mapa e aponta o caminho — e os melhores companheiros — para chegar a seu destino. No percurso, lágrimas, risadas e algum medicamento para suportar a caminhada.
O nome do bebê-herói é Heitor e cabe a ele acompanhar, ainda que tropegamente, os passos de uma mãe cansada e deprimida ao longo de dois anos. De dentro de um apartamento em São Paulo, ela conduz a trama, mas não está sozinha, pois o que relata diz respeito a muitas mulheres na mesma condição de principal fonte de cuidados dos filhos. É um grupo, um clã, e merece ser encarado como tal: “Convém tratá-las com paciência e não reparar que botaram a blusa do avesso”, alerta.
Aos trechos descritivos que mapeiam os dias dessa mulher aprendendo a cuidar de seu bebê agregam-se “diários de campo”, assim batizados por trazerem listas, anotações e acontecimentos banais da rotina de uma criança. Apesar de abordar um tema pesado e estados mentais de grande perturbação, o humor e uma escrita afiada caracterizam o livro, especialmente nas situações que formam a equação mãe exausta/bebê feliz. Com tal inflexão embarcamos nesse texto singular, cujas percepções são alteradas pela ironia que nunca se demite do gesto de rir de si. “Uma das piores coisas em literatura, e acho que em outras áreas também, é o hábito de se levar muito a sério, de se considerar muito sábio e profundo. Nossa literatura é muitas vezes prepotente demais e se valeria de maior leveza”, afirmou Vanessa Barbara em entrevista.
Escrever e cuidar
A aproximação entre o escrever e o cuidar, outro ponto alto do texto, apresenta de modo preciso uma matemática que raras vezes fecha: Sylvia Plath, Alice Munro, Clarice Lispector e Natalia Ginzburg surgem como vozes fundamentais para materializar o esforço de muitas escritoras que tiveram de se revezar entre fraldas, mamadeiras e a máquina de escrever. Trata-se, é bom que se diga, de um grupo de mulheres brancas aquelas elencadas por Barbara. Não tiveram, entre as barreiras enfrentadas, os obstáculos colocados para as mulheres negras, para quem a rotina de cuidar e se dedicar a um trabalho intelectual surge como desafio ainda maior. Que o digam Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, para ficar em exemplos brasileiros.
Vanessa Barbara centra seu foco no século 20 e sustenta o livro em pesquisas sólidas sobre os autores. No caso específico de Lispector, no entanto, surgem reiteradas remessas à biografia de Benjamin Moser, em detrimento de poucas referências à da professora e pesquisadora Nádia Batella Gotlib, de quem o crítico estadunidense comprovadamente plagiou trechos da obra Clarice — uma vida que se conta (1995). Tal escolha configura uma fragilidade do texto de Barbara, se considerarmos que ele discute o trabalho criativo de escritoras cuja vida foi marcada por inúmeras formas de opressão patriarcal.
No ano do centenário de sua morte, Kafka é um personagem que entra de forma orgânica, aproximando leituras, ainda que pelo viés da neurose: a luta contra a depressão crônica, a rotina heterodoxa de trabalho, a busca constante por variados tipos de tratamentos. Todos esses elementos também caracterizam os quatro escritores escolhidos. Aqui e ali, para os que podiam, viagens terapêuticas, caso do privilegiado Henry James; ou o cultivo do corpo, como a dedicação à natação e longas caminhadas, para Kafka. Privações financeiras afetaram as mulheres de forma diferente, sobretudo se delas dependia o cuidado dos filhos. Sylvia Plath e Clarice Lispector se encontravam nessa situação.
Fato é que todos, incluindo nossa protagonista, produzem a partir de forte tendência à introspecção e sob a vigilância de nervos à flor da pele. Tornam-se, nesse sentido, parentes de sangue, mais ou menos infelizes, mais ou menos neuróticos. Nesse painel múltiplo, a trajetória da narradora é bem urdida àquela de seus pares literários. Ela também vive do trabalho intelectual, traduzindo obras e pesquisando mitos.
Três camadas de noite vai ser lido por um público feminino, porque sua proposta interessa e provoca imediata identificação. Mas o livro merece ver ampliada tal recepção, já que nele cabem muitas outras dimensões: é literatura sobre depressão, literatura sobre maternidade, literatura sobre literatura.