Entre o clássico e o popular

Resenha de “O livro roubado”, de Flávio Carneiro
Flávio Carneiro, autor de “O livro roubado”
06/01/2014

Um crime, um culpado, vários inocentes, pistas, contrapistas e um policial ou detetive a usar o cérebro ou a violência para sair ileso e vencedor de todo esse labirinto. Quase sempre com estes elementos básicos delineados por Edgar Allan Poe vem se construindo a história do romance policial clássico, por mitos como Agatha Christie, Dashiell Hammett, Patrícia Highsmith, P. D. James, Conan Doyle — uma longa lista, enfim.

Naturalmente que ao longo da história elementos e estruturas se renovam. No já clássico Crônica de uma morte anunciada, também um romance policial, Gabriel García Márquez ousadamente começa dizendo quem vai matar e quem vai morrer: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30 da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo”.

Em seu novo romance, O livro roubado, Flávio Carneiro prefere seguir os preceitos básicos do gênero, e assim retoma um dos maiores fascínios que as tramas policiais promovem — a busca dos motivos que levam ao crime e o prazer em desvendá-lo.

Neste caminho, chama logo a atenção do leitor o senso de homenagens promovido por Flávio, um fã confesso dos livros e da literatura policial. O romance se manifesta mesmo como um ato de reverência a estas duas visíveis manias de seu autor, que aqui apresenta as livrarias e as bibliotecas como base de todos os conhecimentos, e os autores policiais como promotores de um divertimento lúdico, instigante e inteligente. Ou seja, o texto parece escrito para nos lembrar que o gênero policial é, sobretudo, um desafio à perspicácia do leitor.

Trilha
Flávio Carneiro parte de um enredo simples. Um livro raro, Histoires extraordinaires, de Edgar Allan Poe, organizado e traduzido por Charles Baudelaire em 1856, é roubado da biblioteca de Aureliano de Medeiros Mattos, um bibliófilo que lidera uma estranha confraria onde os membros adotam nomes de antigos alquimistas. Para recuperar o livro, Mattos procura um detetive — assim encontra André, que então se passa por Miranda, um detetive de verdade.

Este jogo inicial de confusões é a origem de tudo.

André, um guia turístico que leva seus clientes em passeios pelos bares do Rio de Janeiro, já vestido na pele de Miranda, busca a ajuda de um velho amigo, Gordo, agora proprietário de um sebo que insiste em chamar de “pequeno negócio de livros usados”. Os dois já se encontraram em outro livro de Flávio, O campeonato, em que ainda adolescentes entram num estranho jogo de espionagem, do qual todos saem perdendo. Nesta nova aventura, já adultos — André tem 34 anos —, oferecem ao autor condições de trabalhar com uma linguagem distante dos recursos da literatura juvenil que doma o romance anterior.

Neste sentido, ganha corpo o minucioso trabalho com os diálogos, também uma tradição do romance policial. É a partir das longas — mas divertidas — conversas dos personagens que o leitor vai tomando pé de cada passo da investigação e vai descobrindo todos os segredos que envolvem a trama. E aqui cresce uma das maestrias do texto. Flávio Carneiro cuida para que estes diálogos não soem como falsidades ou despropósitos. Chega mesmo a domar as peculiaridades da fala de cada personagem para que todos entrem no eixo da verossimilhança.

Há outras tradições do gênero que merecem destaque neste romance. As mulheres são sempre bonitas e sensuais, as sociedades secretas — no caso a confraria dos “alquimistas” — se comunicam com códigos e charadas e, certamente a mais recorrente de todas, o culpado é o mordomo, informação que o leitor recebe já no primeiro capítulo.

Flávio Carneiro, com todas estas vertentes que elege em seu novo romance, faz, na verdade, uma trilha entre o clássico e popular. As longas conversas de Ana, um misto de secretária de Miranda e estudante de história, com os heróis André e Gordo e também Diego, um estranho professor de química, traz preciosas informações sobre a história da alquimia e dos livros, enquanto, contando seu périplo pelos botequins, André vai descrevendo as histórias e as lendas dos bares do Rio de Janeiro. Com isso o autor estabelece uma mesma hierarquia para as trajetórias clássicas e populares da humanidade.

Mistério despojado
Há um tempo Carneiro pensou numa trilogia em homenagem ao Rio de Janeiro. A estréia do projeto se deu em 2002, com o romance juvenil O campeonato, onde pela primeira vez aparecem os personagens André e Gordo. Depois, em 2006, veio A confissão, um romance em que um homem seqüestra uma mulher para lhe contar uma estranha história de amor. Finalmente, em 2011, publica A ilha, narrativa de ficção científica em que o Rio aparece cercado de água por todos os lados. O livro roubado parece reabrir o projeto não somente por trazer de volta os velhos protagonistas, mas, sobretudo, por caminhar pela cidade descrevendo toda sua paisagem, do subúrbio aos encantos do mar. Ou seja, a homenagem ao Rio virou tetralogia.

Outra semelhança com as obras anteriores é que, mesmo falando para um público adulto, Flávio mantém uma linguagem despojada. E aí surge uma curiosa maneira de falar de temas profundos, como alquimia e bibliofilia, sem cair no pedantismo. É como se ele nos dissesse que a cultura está muito além dos bancos das Academias e que o homem comum também contribui com uma rica parcela nesta interminável Babel.

O livro roubado é um exercício de construção de anti-heróis. Há carisma em todos os personagens, até porque todos, a exemplo dos investigadores mais amados do gênero, são também desajustados e falíveis. A esperança do leitor é que a trama não fica de todo amarrada. Há espaços a serem preenchidos. E aí cabe a ele, o leitor, usar a imaginação ou esperar que Flávio Carneiro volte, transformando a homenagem ao Rio em pentalogia.

Certeza mesmo só há no fato de ser o livro uma agradável e divertida leitura, mesmo nos momentos em que veste a pompa da erudição.

O livro roubado

Flávio Carneiro
Rocco
224 págs.
Flávio Carneiro
Nasceu em Goiânia e mora em Teresópolis (RJ). Publicou catorze livros e escreveu dois roteiros para cinema. Alguns de seus romances e contos foram publicados nos EUA, na Inglaterra, na Alemanha, em Portugal, na Espanha, na Colômbia e no México. Ganhou vários prêmios literários, dentre eles dois FNLIJ (Prêmio de Altamente Recomendável para o Jovem).
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho