Entre o azul absoluto e os seres rejeitados

"Poesia reunida" confirma a capacidade de Donizete Galvão de formular profundamente o mundo
Donizete Galvão por Ramon Muniz
01/01/2024

Já se repetiu à exaustão que os poetas são antenas. No entanto, mais do que simplesmente retransmitir os valores de uma época, os grandes poetas são capazes de captar ondas muito sutis, cujos mínimos sinais revelam uma nova figuração das coisas cotidianas, projetando-as num horizonte ainda pouco vislumbrado. A aguardada reunião da poesia de Donizete Galvão confirma essa capacidade do autor de formular profundamente o mundo, plasmando uma decantada atenção ao aparentemente banal com uma consciência desencantada diante da vida social em latente colapso.

Organizado por Paulo Ferraz e Tarso de Melo, o volume Poesia reunida traz em ordem cronológica a produção de Donizete Galvão, desde sua estreia em Azul navalha (1988) até o derradeiro O antipássaro (2018). Desse modo, a publicação apresenta o poeta a uma nova geração de leitoras e leitores, além de permitir uma revisão coerente da obra, apreendida agora em sua totalidade. Nesse sentido, é possível perceber melhor como alguns motivos atravessam os livros, engendrando modulações que dinamizam a escrita do poeta, a começar por seu constante diálogo com as artes visuais.

As “certas sedes de azul”, anunciadas no poema De fora, de Azul navalha, desdobram-se em As faces do rio (1991), em poemas como International Klein Blue — “Azul borracha./ Anula as outras cores e inaugura o reino do um” —, ganhando ainda mais força na imagem da “pedra de anil”, de Pontos de luz:

A pedra de anil
atirada na água
cria fiapos de cor
até que ondas de azul
tinjam toda a vasilha.

A beleza epifânica das “ondas de azul”, construída lentamente por “fiapos de cor”, é indissociável da diluição da pedra de anil para a lavagem de roupas. Por sua vez, essa ação doméstica é replicada nos gestos de artistas plásticos em poemas como Anil, de Do silêncio da pedra (1996) — “Pedra tocada por Yves Klein,/ em que borda do poço/ se perdeu?” — ou o incrível Blues para Niura, de O homem inacabado (2011):

1
na geométrica
pedra de anil
— objeto virtuoso —
o menino descobre
o que não havia:
o azul absoluto
sua cosmogonia

2
mergulhe as pastilhas
azuis na água da bacia
inaugura-se um mar
miudinho
(antecipação dele)
em meio à serrania

[…]

5
a caneta bic azul explode no bolso
da camisa branca de uniforme
o corpo fica poroso ao azul
bebe dessas efêmeras alquimias

6
curar as feridas
da boca
          com azul de metileno
a cor que persiste na língua
vem de um tempo sem memória
antes da primeira palavra

A lembrança do menino descobrindo o “azul absoluto” é reconstituída pela reflexão do homem cultivado, fazendo uma síntese entre o conhecimento prático do trabalho manual e a linguagem especulativa da meditação poética. Mais que isso, a materialidade do azul atravessa o corpo do sujeito, entranhando a experiência sensorial na ambígua “língua”, a qual cristaliza concretamente o acontecimento enquanto poema e, ao mesmo tempo, aponta para um “tempo sem memória”. Sem o corpo, portanto, o poema jamais teria sua centelha de descoberta — mas é somente por meio do poema que essa centelha se ilumina novamente, sendo agora partilhada com todas e todos que o leem.

Essa valorização do corpo a corpo com o mundo, marcada pelo trabalho físico, como lição material de poética é recorrente em toda a obra de Donizete Galvão, como aparece em Jardinagem, de A carne e o tempo (1997):

Cuide do esterco, sem asco.
Carregue o estrume de vaca
e vá fazendo um monturo.
Deixe que a mistura arda,
que o cheiro acre entre nas narinas.
Depois, revolva tudo com as mãos
mesmo que o esterco penetre nas unhas.
Fira a terra com a enxada,
espalhe o esterco pelos canteiros.
Deixe que seus cabelos se enrosquem
na testa e na nuca suadas.
A roseira lhe trará
rosas mais perfumadas.

Palavras simples
Nesse processo de exaustiva construção da beleza, Galvão reabilita as palavras mais simples e, muitas vezes, consegue suspender, ainda que momentaneamente, a cisão entre eu e mundo — como nos versos finais de O poço: “Enquanto se engole a água, as costelas roçam o chão./ Não se sabe se o pulsar é dela, terra, ou dele, coração”. Isso não significa, por outro lado, que essa seja uma poética de absoluta integração com o que chamamos de natureza. Ao contrário, na maioria dos poemas, a relação do eu com o mundo é marcada por violentas reações externas contra o homem, como em Oceano cinza, no qual o olhar do outro é, em si mesmo, um ataque (“Mil olhos nos fitam./ Mil olhos nos furam”), que culmina nos “Olhos de gaivota/ que rejeitam o peixe/ e miram o fígado/ do homem na areia”.

Que o título do poema remeta a Ocean Greyness, quadro de Jackson Pollock, sendo, portanto, um sugestivo exercício de écfrase, não relativiza a tensão corporal entre sujeito e objeto. Mediada pela referência artística, esta tensão se intensifica na medida mesmo em que inverte os polos da relação, uma vez que aqui é somente o quadro que nos olha. Assim, o poema aproxima a reflexão sobre a imagem não-figurativa do artista norte-americano ao delírio de uma cena na praia na qual todos os entes (sal, chuva, limão, gaivota, oceano) voltam-se contra o homem indefeso, cuja imagem, por sua vez, torna-se uma versão reduzida, e sem nenhum heroísmo, do mito de Prometeu.

No entanto, são os embates da vida na metrópole que produzem os poemas mais angustiantes, relevando o desterro do mineiro de Borda da Mata na cidade de São Paulo. Se é verdade que, em muitos momentos, Galvão demonstra um desajuste de origem, como no poema-título de Ruminações (1999) — “Nunca saí dessa roceira Minas/ que nos dá aflição e dor como herança./ […]/ Vidas acanhadas atrás de janelas/ na cidade que não definha nem prospera” —, não se pode negar que o espaço urbano mostra-se ainda mais doloroso, uma vez que atravanca a própria experiência sensorial, como em A cidade no corpo, de Pelo corpo (2002): “Esta cidade: minha cela./ Habita em mim/ sem que eu habite nela”.

Nesse espaço de desagregação, o sujeito alijado não encontra nenhum refúgio, tecendo, por vezes, uma frágil identificação com outros seres rejeitados, como a “pomba lerda”, de Deformação (“eh pomba lerda/ viu o que a cidade lhe fez?/ Bem feito para você./ Viu o que a cidade nos fez?”), de Mundo mudo (2003). Tal violência do espaço urbano, implacável com os desajustados, será radicalizada no último livro, O antipássaro, a partir de uma revisitação dos motivos da própria obra, com a qual Donizete Galvão coloca em questão aquele esforço de construção de beleza presente nos primeiros livros.

Isso fica evidente em Flora urbana (que, aliás, entre parênteses, pode ser comparado a alguns poemas de Caçambas, de Ruy Proença, dando a ver as afinidades entre os dois poetas), no qual o conhecimento prático sobre botânica, parodiado em dicção enciclopédica, nutre a imaginação poética na descrição das máquinas e dos objetos:

As caçambas vivem nas ruas, principalmente em casas que passam por reformas. Devoram azulejos, tijolos, pisos quebrados, a memória da família que habitou aquela casa. Todas trazem em suas pétalas números de telefones gravados. Esporádicas, não têm data certa para florir. São um monumento ao provisório. São flores pesadas, difíceis de serem removidas ou roubadas.

Todavia, apesar da melancolia dos últimos livros, é preciso dizer que Donizete Galvão nunca perdeu, de todo, o empenho de captar alguma beleza nas diminutas frestas do cotidiano opressor. Afinal, como nos ensina o poema Entre noites, entre uma e outra escuridão, há sempre o “voo/ breve/ sob/ o sol”.

Há, obviamente, muitos outros percursos em Poesia reunida, que as leitoras e os leitores poderão explorar. Um último comentário, porém, me parece pertinente. Olhando em retrospectiva, a trajetória poética de Donizete Galvão coincide com o arco da chamada Nova República, entre a promulgação da Constituição de 1988 e o golpe institucional de 2016. Trata-se de um raro momento de estabilidade democrática no país, cuja história é marcada por uma série de intervenções autoritárias. No cenário poético, grosso modo, esta estabilidade comparece na diversidade das propostas estéticas, fomentada de maneira consciente pelas mais importantes revistas literárias da virada entre anos 1990 e 2000.

Sem participar diretamente de nenhuma destas revistas, a poesia de Donizete Galvão fez parte desse ambiente pluralizado, mas sempre manteve também, por sua própria condição interna de desajuste, certo grau de afastamento dos valores em voga nos principais círculos literários do período, ocupando, assim, um espaço singular dentro do panorama poético contemporâneo. Tentar sondar, nessa tensão entre o azul absoluto e os seres rejeitados, uma imagem consistente da vida social brasileira nas últimas décadas pode ser algo revelador.

Poesia reunida
Donizete Galvão
Círculo de Poemas
526 págs.
Donizete Galvão
Nasceu em Borda da Mata (MG), em 1955. Mudou-se para São Paulo (SP), em 1979, onde trabalhou como jornalista e publicitário. Recebeu o prêmio APCA de autor revelação por Azul navalha (1988). Publicou nove livros de poemas, agora coligidos em Poesia reunida. É autor dos infantis O sapo apaixonado (2007), Mania de bicho (2010) e Escoiceados (2014). Faleceu em 2014.
Renan Nuernberger

Nasceu em São Paulo (SP), em 1986. É poeta, crítico e professor de literatura. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, organizou a antologia Armando Freitas Filho (EdUerj, 2011), e o volume de ensaios, Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas / Fapesp, 2018), este último em parceria com Viviana Bosi. Como poeta, publicou Mesmo poemas (2010) e Luto (2017).

Rascunho