Entre escritoras e personagens imortais

Resenha do livro "Vésperas", de Adriana Lunardi
Adriana Lunardi, autora de “Vésperas”
01/01/2003

Recomenda o bom senso atual (ou seria senso comum?) que o escritor — além de escrever seus livros — alimente as “melhores relações” com aqueles que escrevem em jornais. Quanto mais estúpido ou inescrupuloso, melhor. Isso é garantia de elogios rasgados à “obra-prima” do momento. Este Rascunho não está livre dessas espécimes e também foi contaminado. Um exemplo é o amontoado de bobagens (a começar pelo título Chuva de bichos, na edição de novembro) perpetrado pelo senhor Luiz Paulo Faccioli, incensando um colega de editora, cujo grande achado é trocar minúsculas por maiúsculas, colocar dois pontos no lugar do ponto final e, como o caminho das estultices não tem placa indicando o fim, a estupidez não se resume a esses singelos exemplos. O contista em questão — Altair Martins — infelizmente não está só na obsessão de conduzir a literatura para o terreno pantanoso onde já chafurdam as artes plásticas, nas quais qualquer monte de ferro retorcido alcança o status de “arte”. Após a leitura de seu livro Se choverem pássaros, a dúvida persiste. Será que ele pretendia fazer uma “instalação” ou aquilo é mera colagem de não-alfabetizado? Mas e o conteúdo?, implora um anacrônico inocente. O conteúdo pouco importa e o livro de Altair é do mais abjeto sentimentalismo e primarismo, atestando que as duas “qualidades do amigo que escreve em jornal” podem andar juntas. Não sei a razão, mas a simpatia pela baboseira está virando prerrogativa de contista. É comum escutar que isso ou aquilo daria um conto. Bobagem. O que dá um conto é o talento do escritor, mas infelizmente dia sim dia também um “zé mané vaidoso” decide virar escritor e elege o conto como pista de provas. A última década, no que se refere ao conto, foi uma década extraviada. Raríssimas exceções, entre elas uma que o senhor Altair não pode deixar de ler: Cíntia Moscovich.

Mas nem tudo está perdido. Outra contista desponta na contramão dos tolos/engraçadinhos, fazendo da simplicidade e das matérias-primas mais óbvias — vida e morte — uma obra que merece todo o respeito e atenção, Acima de tudo, trata-se de um louvor à literatura, à liberdade e ao prazer de um texto criativo.

Adriana Lunardi foge à regra do momento no qual o importante é inventar a forma, por mais estapafúrdia que seja. Privando-se das invencionices, ilumina episódios por demais batidos da vida de escritoras e personagens famosas.

Vida, disfarçada de literatura, em última instância, de liberdade, é o grande tema de Vésperas. Adriana é de uma originalidade em extinção, principalmente no conto, fruto de seu talento e coragem, ocasionando o desfile de uma ficção magistralmente temperada, que mesmo repleta de fortes sentimentos jamais se torna piegas. Avessa a lugares–comuns (não existe lugar-comum mais comum que a morte), a prosa de Adriana não opta pelo comodismo. Embora o fio condutor seja comum aos nove contos, estes são registrados ora pela câmara de Ozu, ora de Kubrick, e, mais precisamente, de Bergman. Se Bergman fez da morte personagem jogando xadrez com um cavaleiro medieval e tornou a convocá-la na forma de palhaço interpretado por uma atriz, Adriana Lunardi faz uso da morte por meio da angústia, da solidão, das inevitáveis viagens à infância e sobretudo por meio dos olhos implacáveis do tempo: saudade e frustração.

Adriana tem a delicadeza e a força criativa de Florbela Espanca, a grande ausente e talvez a mais trágica, o que torna possível discorrer sobre o mesmo tema repetidas vezes, sempre apresentando novidades. A falsa simplicidade do conto, capaz de hipnotizar os poucos talentosos, inspirando-os na busca de “invenções engraçadinhas”, não encontra abrigo na narrativa de Adriana, que tem total domínio da forma e talento para narrar cativando o leitor pela naturalidade e honestidade de uma autora que dispensa truques. Dona de um lirismo cortante que aproxima a lógica de seus contos da lógica do poema, culminando no encanto de uma prosa plena de correção e simplicidade. Adriana oferece o instrumental para o leitor acompanhar o contexto particular de suas personagens e daí concluir que a hora e a maneira de morrer é conseqüência do modo de vida pessoal. Se considerarmos que morte não é fruto do inesperado, está longe de ser um mero acontecimento, a narrativa de Adriana desnuda a angustia e solidão dessas nove mulheres e faz lembrar Sartre: “a essência do homem é sua existência e ele pode fazer dela o que bem entender”.

Ao combinar ficção com biografia, a autora impõe movimento à trama, despindo-a da sisudez das vestes dos documentos, na qual o leitor se vê transformado em profanador de sepulturas.

Os contos de Vésperas podem ser lidos como “quase-poemas”, frutos da sensibilidade da autora conduzindo ao inevitável o seqüenciamento genético da pedra no bolso de Virginia Woolf e a pedra no meio do caminho de Drummond. As afinidades são inquestionáveis. Como uma pedra no bolso de qualquer ser humano não é o bastante para causar afogamento e uma pedra sem movimento não pode fazer mal a ninguém, o relato de Adriana é mágico, como se dissesse levanta-te e anda ou anda e afunda-te. Ginny, com Adriana no papel de Virginia, é o conto de abertura, justamente sobre Virginia Woolf, comovente radiografia da angústia, quer existencial, quer criativa, transportando o leitor ao local do acontecimento, assustado voyeur a espreitar o trágico. Já no conto sobre Dorothy Parker — Dottie —, a morte da escritora merece o ponto de vista do seu cão.

O terceiro conto Ana C. traz Ana Cristina César como personagem, não fosse ela a eterna personagem, a escritora mais superestimada desta pátria que tão bem sabe maltratar seus verdadeiros escritores. Em Ana C., a autora cria um clima claustrofóbico, incômodo, e em alguns momentos cruel, descrevendo as mortes da escritora e a de um homem a quem ela mostra o caminho da morte.

Em Victória, um homem aproveita a notícia da morte de Sylvia Plath, a terceira suicida do elenco de Adriana, para questionar o sentido da vida. Victória é emblemático: o escritor que precisa morrer para chegar ao conhecimento do leitor. O conto sobre Clarice (a personagem principal é uma menina adolescente) faz lembrar várias personagens, ora inocentes ora obsessivas, da escritora Ana Miranda, e o resultado é um magnífico mal-estar só provocado por escritores afeitos a bem contar histórias.

Vésperas tem intimidade com Thanatos, o que não implica em morbidez, tampouco em existencialismos tardios. Vésperas é um livro sobre a vida, sobre literatura, sobre a imortalidade de algumas grandes escritoras e de outras tantas personagens. Eisenstein estava certo. “O homem é escravo da idéia da morte”.

Vésperas
Adriana Lunardi
Rocco
127 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho