O homem e sua hora e outros poemas, de Mário Faustino, organizado por Maria Eugênia Boaventura, agrega à obra do poeta, publicada em 1955, outros textos reunidos em Fragmentos de uma obra em processo (1958-1962) e Esparsos e inéditos (1948-1962), além de leituras da organizadora e de Benedito Nunes, crítico e amigo do poeta.
Poeta, jornalista e crítico literário, Faustino trabalhou na perspectiva de garantir um lugar de destaque para o debate da poesia no contexto histórico e cultural conturbado dos anos 50. Nascido em 1930 e morto aos 32 anos num acidente aéreo, em plena atividade intelectual, deixou como legado, além da obra poética, uma militância incansável de reflexão e ação no cenário nacional que até hoje é de reconhecida relevância. Entre diferentes atividades exercidas, destaca-se sua atuação na página Poesia-experiência do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (1956-1958). O caráter jornalístico da sua crítica visava instigar “leitores competentes”, numa linguagem simples e acessível ao grande público, ao mesmo tempo, carregada de erudição e rigor.
Poesia-experiência notabilizou-se no sentido de deflagrar um amplo debate do papel da poesia e do poeta no mundo: “O poeta é, antes de mais nada, um homem que sente na própria carne (…) o universo, modificando este, obrigando-o a reagir às palavras com que o poeta ataca, celebra ou lamenta”. A necessidade de o poeta experimentar o universo através da palavra reinventada é a mesma do crítico que experimenta em seu ensaio a leitura do tempo através de vozes que dialogam com a tradição e o pulsar do novo, presente em cada poema, numa busca de sentidos e de expressão que evoca deuses e demônios: “Na memória dos homens… pede a Hermes/ Idéias que asas gerem nos tendões/ Das palavras certeiras — logos, logos/ Carregando de força os sons vazios”.
A preponderância do logos (racionalidade) dá a tônica a essa poética sem, contudo, descartar o pathos (paixão) e seus abismos. Trata-se da concepção de uma arte, antes de tudo “artifício”, trabalho de artífice em uma oficina que não pode prescindir dos instrumentos de velhos mestres do ofício, mas que precisa estar de portas abertas aos novos. É assim que o poeta-crítico apresenta a página do Suplemento Dominical: “Aqui se mostra poesia. Poesia de ontem, de hoje, até aquilo que talvez seja a poesia de amanhã”. Mostrando-a, se possível de maneira crítica, demolindo e promovendo, procura-se “manter viva a poesia do passado (…) e, do mesmo modo, procura-se reconhecer a poesia nova”.
A preocupação exacerbada de resgate do passado se evidencia no sentido de trazer à tona a poesia de muitos autores considerados por ele como mestres (Ezra Pound, Eliot, Yeats, Rilke etc.). Por outro lado, sobre os ensinamentos dos velhos mestres, Faustino realiza certa antropofagia: devora-os e adapta a aprendizagem adquirida ao momento vivido enquanto experiência. Reelabora, recicla, recria.
Quanto à sua postura crítica, é bom deixar claro que, por mais paradoxal que possa parecer a oscilação entre tradição e modernidade, há uma intransigente defesa do rigor de artífice e um repúdio veemente ao que Faustino considera uma busca de facilidades e uma falta de aperfeiçoamento técnico e maestria do verso e da palavra, além da exigência de originalidade e concisão. Com tanto zelo e tantas obsessões, deve-se compreender as contradições desse homem e de sua obra, presos ao presente vivido e que, comprometido com ele, não poupavam farpas aos seus contemporâneos anônimos ou famosos. Por outro lado, sua erudição e sua recorrência aos padrões classicistas o afastavam, de certo modo, das propostas dos modernistas heróicos, enquanto também criticava os aspectos artificiais e pouco criativos de alguns poetas da geração de 45. Tudo isso, apesar de conflitante, revelava-se através de uma crítica rica e envolvente, que só contribuía para um debate mais amplo.
Ensinamentos em prática
O poeta acreditava que o bom crítico deve ser capaz de pôr em prática seus pretensos ensinamentos. Neste sentido, a experiência poética de Faustino, assim como suas premissas crítica, se efetua em sua “oficina”, dentro dos mesmos critérios de rigor e criatividade.
Segundo Maria Eugênia Boaventura, “o arsenal crítico de Mário Faustino é tipicamente de visada moderna; oscila entre a ânsia de renovação, de inventividade, de atualidade, e o olhar investigativo, acolhedor e dirigido à tradição”. O que poderia se constituir como um antagonismo inconciliável, pela riqueza do seu olhar e da sua experiência poética, é apenas um paradoxo que fomenta a criação e o debate mais amplo. Preocupado com a defesa do verso e do poema longo, ameaçados de extinção por algumas propostas de vanguarda, ele exercita em sua poética tanto a fixação de formas clássicas quanto a inovação de formas e de conteúdos estéticos.
Comentando sobre o alcance didático do método poundiano de Mário Faustino, Benedito Nunes lembra que “a musicalidade, o fluxo das imagens e o jogo das idéias, tríade da linguagem, naquele estado máximo de condensação, carregado de significação máxima que Pound fixou como própria da poesia”, são fatos relevantes a observar. Daí esses três elementos serem permanentes na construção de cada poema e funcionarem como potencializadores da expressão poética manifestada tanto pelos sujeitos líricos quanto pelos épicos nos poemas de Mário Faustino. Já em Prefácio, primeiro poema do livro, o ritmo e rimas garantem a musicalidade de uma manhã que se anuncia enquanto imagem que sustenta um jogo de idéias: presença e ausência, dia e noite, claro e escuro, princípio e fim, vida e morte. “Quem fez esta manhã, quem penetrou/ À noite os labirintos do tesouro,/ (…) Quem fez esta manhã fê-la por ser/ (…)/ Ausência sem pecado e fê-la ter/ Em si princípio e fim: ter entre aurora/E meio-dia um homem e sua hora.
Vida e morte são temas recorrentes apresentados no jogo de tensões, ou melhor, de tensa relação. No rastro de Rimbaud, o poeta é um vidente. Vida e obra, tão intimamente ligadas, dificultam a cautelosa separação para uma leitura apurada. Se Faustino previa ou não sua morte prematura é um mistério, uma especulação que não é de nossa competência aprofundar. O certo é que seus sujeitos líricos expressavam toda inquietação pulsante de temor da morte e de entusiasmo pela vida, compreendida a partir da ameaça permanente de interrupção desta. Na verdade, em muitos momentos, trata-se mais de um sujeito épico do que propriamente lírico, já que pretende expressar não apenas seus desejos de indivíduo no mundo, mas da raça humana. Como se a “vida toda linguagem” estivesse permanentemente ameaçada pela morte toda silêncio, e só nessa relação paradoxal de amor e recusa fizesse sentido. O certo é que as imagens utilizadas para desenvolver essa tensa relação são fortes e eficazes. “Quem fez esta manhã predestinou/ Seus temas a paráfrases do touro”. É com inocência que o touro caminha para o sacrifício, mas o poeta vidente em sua oficina, entre tantos recursos, lança mão dos oráculos: “Venho a Delfos e Patmos consultar-vos/ Vós que sabeis que conjunções de agouros/ E astros forma esta Hora, que soturnos/ Vôos de asas pressagias este instante”.
Como todo mito é uma narrativa carregada de signos que exigem leitura, qualquer resposta dos oráculos está aberta a muitas possibilidades de interpretações. Só resta ao sujeito do poema O homem e sua hora o apelo à generosidade da estátua, numa clara tomada de posição utópica pela crença na vida e na poesia, como musa maior e soberana: “Vai, estátua, levar ao dicionário/ a paz entre palavras conflagradas./ Ensina cada infante a discursar/ Exata, ardente, claramente: nomes/ (…)/ Em paz com suas coisas, verbos em/ (…)/Paz com os planos atros do universo”.