Em dois lançamentos recentes, a paulistana Lilian Sais opera sua escrita por meio da inter-relação de gêneros. Enquanto o volume poético Motivos para cavar a terra substancia a materialidade de seus versos na prosa, o romance O funeral da baleia modula seu estilo na prevalência de um lirismo alegórico. Do mesmo modo, embora produtos de concepções formais distintas, ambos apresentam certos aspectos de similaridade: o uso de uma estruturação fragmentada que destaca os hiatos, a condução de um andamento de saltos que busca uma reiteração paralelística entre os segmentos, a escavação da memória como esteio narrativo e o desatamento da linguagem para ressignificar experiências num ambiente de dramas pessoais e/ou coletivos. E é exatamente neste último procedimento que os livros igualmente demonstram falhas. Ao tentar enxergar o insondável no banal, a autora procura estabelecer um vínculo entre um espectro sentimental e uma imagem metafórica que não se cumpre, pois muitas chaves de entendimento são substituídas por elipses. O resultado são implicações que ficam à deriva no texto e articulações frouxas, malfeitas e inexistentes.
Tais problemas se evidenciam com mais expressão em O funeral da baleia. Com menos direcionamentos do tema central, o romance peca exatamente na analogia que elege como extensor interpretativo. A trama se inicia com um breve episódio sobre uma baleia que encalha numa praia, chicoteando sua cauda em negativa à morte. Uma transição brusca depois, uma narradora anônima relata uma chamada noturna que lhe avisa sobre a morte da mãe. Outro desvio e a narração agora muda para a terceira pessoa, focada na rotina pálida entre um pai e uma filha. Este formato irá predominar pela história e, pouco a pouco, revelar que tudo, de uma maneira mesmo suspeita, está correlacionado.
Quem recebe a notícia da perda é Joana, que divide a mesma casa com o pai, Artur Pereira, agora viúvo. Eles residem em Assum Preto, uma “cidade vazia para o tamanho, com pouco pássaro para o nome”, atados a um relacionamento frio e distante, que se dispersa ainda mais a partir da pressão da ausência sobre ambos. A filha, fiada em lembranças e testemunho do curso dos fatos, irá decifrar um machismo que se decanta dos pequenos gestos cotidianos, muitas vezes travestidos de zelo e instrução. O homem, forjado por dogmas patriarcais, lutará contra a imanência da velhice, sustentando a aparência de uma virilidade em inevitável demolição.
Assombrados por essas possibilidades de finitude, os personagens encenam um teatro de melancolia no qual se detalham ações corriqueiras com certa insistência e repetição, de modo a produzir uma cisão na primeira camada da trama e trazer à tona reflexões elusivas sobre solidão, luto e orfandade. A questão é que essa é uma temática extremamente batida — aliás, corre o risco de se tornar um subgênero da literatura contemporânea brasileira, dada a quantidade de publicações recentes nas quais um narrador tenta lidar com os efeitos da morte de um parente —, e a autora procura escapar da fórmula genérica, acrescentando um componente insólito ao enredo que se conecta a tal baleia encalhada na praia. Sem dúvida, essa é uma imagem de forte poder sinestésico, contudo é mal trabalhada e o que sobra são indicações do que representa, passível de tantas interpretações. Pode o animal agonizando em seu colosso anatômico simbolizar a ruína familiar? O processo de deterioração causado pelo desfalque materno? Pode ilustrar o absurdo de se apegar à normalidade enquanto tremores sinalizam a aproximação do desastre? Pode. O caso é o que pode ser tudo, no fim acaba sendo nada.
Desalinhado
Faltou apuro ao articular o acontecimento inusitado às revelações dentro da singeleza do espaço doméstico, nas relações traduzidas da linguagem de segredo por meio da qual a personagem/narradora ressente ao local, ao pai, a si mesma. Soa desalinhado, e tampouco isso tem a ver com a não linearidade textual. Mesmo que vazada e movediça, fundamentada em abstrações, a prosa poética não dispensa uma abordagem clara. Do mesmo modo que a poesia em prosa, sendo este um conveniente passe de entrada para as páginas de Motivos para cavar a terra, livro vencedor do Prêmio Cepe Nacional de Literatura 2021.
A antologia poética também trata do luto, contudo num sentido mundano e crítico. Desde o primeiro verso, Lilian Sais define o signo que irá caracterizar o volume como um todo, cuja ressonância advém da ação de um único instrumento: a pá. Escrever mimetiza-se num ato de escavação, com o qual se transcende o significado comum, alcançando implicações mais complexas a partir da relação dos poemas com assuntos recorrentes e discursos que vibram para além da forma. Trata-se de manifestações prementes, de protesto, que abordam o fatídico ano de 2020, em que covas eram abertas para serem enchidas com as vítimas do descaso — e escárnio — do atual ocupante da presidência do Brasil em meio à pandemia do coronavírus. As composições nascem no calor da revolta, retratando a realidade do que se extrai dos noticiários e de relatos de horrores que decretam o sofrimento e a indignação pelo evitável como marcas de um tempo eternizado na memória do país.
Outras construções dão conta de um lirismo menos contundente, em situações insertadas de lamento e contemplação, nas quais a verve sintática opera num fundo subjetivo. São momentos luminosos, de criativa engenharia, em que a ideia — concreta e abstrata — de revolver a terra torna-se o motivo temático, tensionando experimentações e percepções para repercutir os ruídos do mundo na interioridade, enxergar o sublime das coisas pertencentes ao banal. Porém, repetindo o erro do romance, a autora incorpora ao texto um componente alegórico que destoa na contextura, servindo somente para atestar que a imagem de uma baleia agonizando se aproxima de uma obsessão particular.
Inclusive há versos que estabelecem conexões entre um livro e outro, sugerindo a vigência de um projeto literário. No poema Os motivos da terra, a autora escreve:
em sinal do meu respeito
realizo o funeral da baleia que morre na praia
o mergulho cavado e definitivo
não o mar não as nuvens
eu louvarei a terra que a todos une
o abrigo possível
a cova a última casa.
Funciona como senha para decodificar a obra em sua totalidade, não deixa de ser estimulante, todavia, para além de um efeito estético, a representação figurada de uma ideia tem de estar incorporada claramente aos elos internos que dão compreensão à trama. Caso contrário a potência imagética de um encalhe descomunal perde o magnetismo de sua presença simbólica e, suprimida, apenas faz evidente certos problemas na articulação do texto.