Ensinar a ver

Ensaios de Paulo Franchetti reforçam a necessidade de que a literatura seja, antes de tudo, fonte de prazer e emoção
Paulo Franchetti, autor de “Sobre o ensino de literatura”
01/03/2024

Em A função da arte, Eduardo Galeano narra uma breve história que adquire tom de parábola ao nos apresentar o menino Diego, que não conhecia o mar. Conduzido pelo pai, viajam ao Sul, atravessam as dunas de areia até que Diego se depara com aquela imensidão de fulgor e beleza. Emudece. Tremendo e gaguejando, a única coisa que consegue é pedir ao pai: “Me ajuda a olhar”.

A alegoria criada pelo autor uruguaio, neste conto de O livro dos abraços, nos remete aos Diegos que fomos diante da vastidão das descobertas da literatura. Entre as frases escritas e o discurso literal, eis que há todo um mar de sentidos que, em algum momento, alguém nos ensinou a ver. Aprender a encontrar essas iluminações nos textos dos grandes autores que amamos é redescobrir, a cada nova explosão, o porquê de nos dedicarmos, como forma de vida, à literatura (enquanto escritores ou críticos, mas, sobretudo, na condição de leitores). Despertar esse olhar em jovens potenciais leitores (e depois continuar alimentando essa fome de ver) é papel fundamental do professor de literatura na sala de aula.

Paulo Franchetti, em Sobre o ensino de literatura, reúne textos em que trata da transmissão do conhecimento literário tanto no ensino básico quanto no ensino superior. Ao longo de cinco ensaios e uma entrevista que encerra o livro, o autor destaca com frequência a importância do contato direto do estudante com o texto — de modo que a literatura seja, antes de tudo, fonte de prazer e emoção —, e a da não burocratização do saber por uma necessidade externa, uma obrigatoriedade disciplinadora.

Infelizmente é isso o que ocorre com mais frequência na maioria das escolas do ensino básico brasileiro, sendo a literatura tratada como forma de apreensão principalmente histórica — por meio de explicações sobre os períodos literários brasileiros —, tendo seu debate estético reduzido a um conjunto de características que os estudantes memorizam e reproduzem. A literatura, portanto, deixa de ser um movimento de epifania e descoberta para ser somente mais uma forma de domesticação do pensamento, justificada pelo argumento utilitarista — avaliação em uma prova ou leitura cobrada em concursos para ingresso em universidades.

Franchetti diz que sem “o impacto emocional, sem a experiência do novo, do desafio do entendimento, a literatura na escola, ainda mais nos tempos atuais, de onipresença do mundo digital e das redes sociais, é matéria morta”. Literatura é para ser um desafio, algo que gera a inquietação quanto ao entendimento óbvio e rasteiro, comum da cultura best-seller a que hoje a maioria dos jovens está inserida. É forçar o foco e a concentração, pois a imersão no literário é das únicas atividades que não admite concorrência — ao contrário do que se vê em cinemas ou museus, atividades em que a apreciação artística é maculada com as telas do celular.

Questionamentos
Em dado momento do livro, o autor questiona “O que se ensina quando se ensina literatura?” e “O que se aprende quando se estuda literatura?”, como forma também de desenvolver o questionamento sobre a importância do estudo da disciplina na escola. Na condição artística do literário, a afirmação do interesse por si mesmo encerra em si sua justificativa. Outra forma de responder seria que o aprofundar na literatura transpõe o conhecimento do que ali se encontra escrito, sendo também, como afirma o autor, o estudo das paixões e dos movimentos do espírito; a cristalização de modelos de língua formal; acesso ao diferente, a outras formas de o humano se relacionar com a palavra e aos costumes.

Trata-se, segundo Antonio Candido, de “confirmar o homem na sua humanidade” — para acenarmos ao seu icônico O direito à literatura. O exercício da alteridade (nem percebida pelos estudantes enquanto leem um ótimo livro) gera a ampliação da imaginação, mas também da compreensão da realidade, da vida, do outro e, por fim, encerra em uma melhor compreensão de si mesmo.

Afirma Franchetti:

Esse deslocamento [de perspectiva], esse mergulhar no texto, na vivência de sentimentos e das paixões que ele expõe, faz da literatura uma forma eficaz de convencimento, de moldagem de opiniões — fato reconhecido por todos os governos autoritários, que veem na arte — e na literatura em particular — uma ameaça à vontade de dominação.

O autor comenta, ainda, que o foco do ensino em literatura não deve ser no estudo isolado da brasileira (ou de qualquer literatura nacional), pontuando aqui a importância de se pensar na tradição de temas e questões desenvolvidos ao longo dos séculos por isso que se chama “literatura ocidental”. Penso que, em sala de aula, o tempo exíguo mal permite o aprofundamento no que há de melhor em nossos grandes autores. Cabe tratarmos toda literatura, dentro das limitações que enfrentamos, como literatura comparada, seja entre seus pares nacionais, seja escalando em níveis macro (latina, ocidental, contemporânea) de acordo com o recorte de quem ministra. O professor é um curador e por meio de sua seleção deve estimular a competência e a fruição por parte dos estudantes.

“O professor e o crítico literários”, aponta o autor, “seriam, antes de tudo, um professor de leitura, um profissional capaz de obter o maior rendimento da leitura de um texto literário (…)”. Lembro o poema Dona Geralda, professora de altura, do poeta Fernando Fiorese. Nele, lemos: “Sem luz nem luneta/ No aluno me ensino.// Leciono nesta altura/ — não sei outro desamparo”.

Ser um professor de leitura/altura é mediar o encontro do estudante com o texto, ampliando suas capacidades de percepção, criando mecanismos de depreender sentidos estéticos e, além disso, ensinando o sabor mais aguçado, porque mais complexo, de saberes de consumo lento — em oposição às rasas saciedades ofertadas por literaturas somente de entretenimento.

A queda a que nos dispomos, ao lecionarmos altura via literatura — e a que os alunos se dispõem ao embarcarem conosco —, é, sobretudo, perder o chão, “como se perde os sentidos numa/ queda de amor” (Luiza Neto Jorge). A literatura ensina a cair. E esse cair em si se torna proporcional à profundidade que decidimos escavar dentro de nós. Isso é ensinar a ver a imensidão do mar. Esta é a emancipação do leitor. Por isso não há ensino de altura por meio de literaturas com a profundidade de um pires.

O professor de literatura deve, então, ser antes de tudo um professor de leitura e ter como seu grande propósito a formação de leitores — algo por vezes esquecido não apenas por docentes (que pressupõem leitores já formados), mas por editoras, livrarias, instituições culturais e demais envolvidos no mercado literário e educacional brasileiro.

Para a formação de jovens leitores, convém lembrar que esses não precisam ser leitores ideais — para retomar o ensaio Notas para definição do leitor ideal, de Alberto Manguel. Talvez de início o jovem leitor não precise recriar a história participando dela (seguir já é um bom ponto de partida), tampouco anotar nas margens ou ter aquela indescritível paz de saber que chegou ao final do livro, mas ao mesmo tempo saber que aquele livro jamais terminará. Nosso papel, enquanto professores de literatura, é formar leitores suficientemente bons, esses que terão no livro um instrumento que ajuda na exploração do mundo, artefato que, a cada leitura, se torna mais aguçado, preciso, potente.

Quanto à caracterização de “ideal” para possíveis leitores que gostemos de ser e de formar, cabe dizer que o leitor ideal não é categoria estanque, não é posto que se atinge e pronto, está feito. O leitor ideal aos poucos se constrói durante a leitura de determinado livro e se torna ideal exatamente para aquele livro. Cada nova leitura é um marco zero, e o leitor, decerto ensinado a ser suficientemente bom, será convidado pelo livro e por si mesmo ao delicioso desafio de se construir um leitor ideal.

Sobre o ensino de literatura
Paulo Franchetti
Unesp
104 págs.
Paulo Franchetti
Nasceu em Matão (SP), em 1954. Em Letras, formou-se na Unifep, fez mestrado na Unicamp e doutorado na USP. Foi professor titular da Unicamp, onde dirigiu a editora da universidade por onze anos. É autor, entre outros, de Estudos de literatura brasileira e portuguesa e Crise em crise — notas sobre poesia e crítica no Brasil Contemporâneo.
Ramon Ramos

É autor de Tinta (2012), Caroço (2013), A vulnerabilidade como procedimento (2018).

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