Ensaios de simplicidade e refinamento

David Hume une sensibilidade estética e crítica com a profundidade da reflexão filosófica
David Hume, autor de “A arte de escrever ensaio”
01/05/2013

“A arte de escrever com finura consiste, de acordo com o Senhor Addison, em sentimentos que são naturais sem serem óbvios. Não pode haver definição mais justa e mais concisa dessa arte.”

Assim David Hume abre o ensaio Da simplicidade e do refinamento na arte de escrever. Senhor Addison é Joseph Addison, também ensaísta e fundador de The Spectator. No texto citado por Hume, Addison comenta o Paraíso perdido, de Milton.

É exatamente esse detalhe — sentimentos — que dá o tom aos ensaios de A arte de escrever ensaio. Esse aspecto, bastante significativo, torna quase impossível identificar com precisão o que é objetivo e o que é subjetivo, pois ambos acabam fundindo-se numa única matéria, em que a parte principal compete ao subjetivo. Significa dizer que a emoção gerada pelo fato é mais importante que o próprio fato: o prosaico da vida cotidiana na tentativa de apropriar-se das imagens transitórias do mundo.

O filósofo torna-se um passante observador, transita entre criador e criatura. Evitando os exageros provocados pela emoção, consegue unir sensibilidade estética com senso crítico e, feito um cronista, retrata os anseios cotidianos. Aborda, assim, tanto os aspectos subjetivos quanto os mais objetivos, como, por exemplo, a questão social.

Estilo acessível
David Hume, filósofo escocês, viveu de 1711 a 1776. Dedicou sua existência aos estudos e à produção de obras “literárias”. A mais conhecida é o Tratado da natureza humana. O que a distingue da maioria é exatamente essa preocupação sobre o que torna o humano ainda mais humano — os sentimentos. Se possível, os bons sentimentos. Mas não é bem assim. O ser humano, no entender deste aprendiz, esquece paulatinamente da capacidade/necessidade de sentir. Principalmente no que concerne ao seu semelhante. Colocar-se no lugar do outro? Quem sabe. Desde que o outro tenha dinheiro, bastante dinheiro.

Os ensaios de Hume combinam o estilo claro e refinado com a profundidade da reflexão filosófica, provando serem adequados ao público geral ao qual se destinavam, como se depreende da variedade de temas presentes nos trinta textos de A arte de escrever ensaio.

O autor segue os passos do escritor e filósofo francês Michel de Montaigne, que, em 1580, publicou Ensaios, uma coleção de textos curtos e meditativos sobre diversos assuntos. Depois de Montaigne, muitos escritores alcançaram notoriedade como ensaístas, dentre eles Francis Bacon, Alexander Pope, Samuel Johnson e o próprio Hume.

Neste último, os ensaios seguem as características mais gerais do gênero, embora se observe que, em parte deles, o autor tenha se preocupado com uma maior formalidade estilística e um encadeamento de idéias que o afastassem das nefastas e cansativas digressões. Seu estilo, como mencionado anteriormente, privilegiava a clareza e uma redação muito além do coloquial: culta, porém acessível. O autor pretendia alcançar, assim, o sincretismo entre as pessoas de letras e as pessoas comuns. Diz, em Da arte de escrever ensaio:

A parcela elegante do gênero humano, que não está imersa na mera vida animal, mas se ocupa das operações da mente, pode ser dividida em indivíduos letrados e indivíduos de convívio social.

No ensaio Da simplicidade e do refinamento na arte de escrever, Hume defende um estilo de escrita nem demasiadamente natural ou simples — como o das conversas informais —, nem tampouco excessivamente refinado, como encontramos em alguns escritores.

Ornamento demais é defeito em qualquer gênero de obra. Expressões incomuns, exibição ostensiva de engenho, símiles incisivos, inflexões epigramáticas, especialmente quando ocorrem com demasiada freqüência, mais desfiguram que embelezam o discurso. Assim como o olho, ao examinar um edifício gótico, é distraído pela multiplicidade de ornamentos e perde o todo em virtude da atenção minuciosa que dedica às partes, também a mente, ao estudar um trabalho abarrotado de engenho, fica cansada e descontente com esse esforço constante de brilhar e surpreender.

Entre dois planos
Pedro Pimenta é o responsável pela seleção dos ensaios deste representante do ceticismo, defensor do raciocínio lógico como método para investigar os fenômenos físicos. Nos ensaios selecionados, Hume discute temas como liberdade, casamento, amor e preconceitos. Sempre com simplicidade e refinamento.

Por vezes, a filosofia assemelha-se aos conhecidos panos de chão — o que estiver ao alcance é recolhido. Nada é definitivo, transitoriedade é o seu outdoor em neon. O banal vestido com a grife do hermetismo, tentativa de alcançar relevância e reflexões “profundíssimas” sobre temas de exclusiva competência dos integrantes desse seleto clube.

Com Hume não é bem assim. Felizmente. Texto acessível até mesmo a um semialfabetizado filosoficamente como este aprendiz que ora toma seu tempo, transcendente leitor.

O filósofo ultrapassa as montanhas dos grandes temas metafísicos, morais e políticos. (Se bem que esses dois estão sempre bem afastados, ou você vai tentar me convencer de que existe moral na política? Se bem que para qualquer lado que eu me vire encontro um petista disposto a essa tarefa.) Pois Hume sobe e desce. Desce às questões comezinhas, aquelas que afetam diretamente o viver diário, o individual e o social. Coisas que fazem audiência de Ana Maria Braga, Faustão e outros alimentadores de idiotas — assuntos como casamento, divórcio, amor, suicídio e “otras cositas”.

O feijão com arroz servido em pratos de porcelana sobre toalhas de linho e talheres de prata. Um respeito para com o leitor, completamente fora de moda.

Estímulo ao pensamento
Borges, que sabia de quase tudo, também sabia disto: “Supongo que la literatura es para servir como una especie de sueño para el hombre, quizás ajudandólo, así, a vivir en la realidad. No hay nada en el universo que no sirva de estímulo al pensamiento”. Será? Onde se escondem nossos ensaístas? Serão os ensaístas filosóficos, que quando aparecem é para discorrer sobre Walter Benjamin? Basta. Mostrem seus talentos seguindo os passos de Hume, Montaigne, Bacon. Difícil? Preparem-se, Gerald Thomas se aproxima.

Olhar para a banalidade das questões humanas sem a pasmaceira da obviedade, arguto leitor, pode parecer simples, mas não é. Por vezes, chega a ser constrangedor. Para o leitor, para o leitor de seu porte, não aqueles tietes de Ana Braga, Fausto, Thomas et caterva.

Mas o que vem a ser um ensaio filosófico?

Um ensaio filosófico é um texto argumentativo em que se defende uma posição sobre um determinado problema filosófico. Uma vez que a melhor maneira de se formular um problema é fazendo uma pergunta, o objetivo de um ensaio filosófico é responder uma pergunta e defender essa resposta, oferecendo argumentos e refutando as objeções.

A definição acima parece estar completamente obsoleta, pois o que mais se lê são bobagens completamente fora desses padrões, mas que fazem questão de ostentar a placa “ensaio”. Por favor, leiam e releiam Hume antes de se intitularem ensaístas.

Diante disso, filosófico leitor, responda a pergunta de Sartre ao final da autobiografia As palavras:

“O que resta?”

A arte de escrever ensaio
David Hume
Trad.: Márcio Suzuki e Pedro Pimenta
Iluminuras
336 págs.
David Hume
Historiador, economista e filósofo escocês, nascido nas proximidades de Edimburgo. É um dos maiores expoentes da filosofia moderna, com pensamento baseado no ceticismo positivo, considerado o fundador da escola cética ou agnóstica de filosofia, o Empirismo, cujo princípio básico é evitar toda hipótese não comprovável experimentalmente. Freqüentou a Universidade Edimburgo, mas por entender advocacia muito chata, dedicou-se entusiasticamente ao estudo de literatura e filosofia, enquanto trabalhava como comerciante. Em busca de aprofundar esses conhecimentos, estudou na França e lá escreveu seu primeiro livro, Tratado da natureza humana, que publicou após voltar a seu país (1739) e que o decepcionou com a fraca recepção. Com esse trabalho tentou, sem êxito, obter a cátedra de ética em Edimburgo.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho