Na atualidade, não faltam escritores cuja produção flutua sobre os imaginados limites entre a literatura e a história, de modo que sua leitura nos faz questionar a todo tempo sobre como o texto deve ser lido. Esse dilema, é claro, não é novidade, afinal a literatura sempre se reelabora a fim de propor novos desafios ao leitor. Por vezes, no entanto, escritores e leitores parecem se esquecer de como passaram por um ou outro desafio no passado, pensando tê-lo superado. José Luiz Passos, em O marechal de costas, indica que, tanto na história quanto na escrita, deixamos algumas questões de lado que ainda podem nos fazer ir além.
No plano da escrita, já na dedicatória do romance, esse importante paratexto, o romancista nos dá a dica para o conflito: “para Claudio Magris, em memória de Osman Lins”. À parte de especulações possíveis sobre as relações pessoais do escritor com aqueles a quem dedica sua obra, é fato que a nós, leitores, aqueles nomes, em especial o de Osman Lins, também brasileiro (e pernambucano), restam na memória, reatualizados ao longo da leitura. Passos concatena os enunciados e os discursos de maneira a nos remeter à escrita do autor de Avalovara e de Nove, novena. O modo como ele trata da experiência das relações humanas em uma microvisão, do mundo das questões íntimas em relação a uma tradição ou à história, também reforça essa aproximação. Vê-se que Osman, apesar de ter produzido décadas atrás, ainda tem posição firme em nossa memória literária.
Sob o outro plano apontado, aquele da história, talvez mais evidenciado pela divulgação do romance, nota-se uma ousada manobra: em dois tempos, por vezes não tão distintos, seja nos acontecimentos, seja na enunciação, o autoritarismo que impede o estabelecimento da pretensa democracia brasileira é retratado como base da nossa república. Nesses dois momentos, relatam-se golpes. Na época de Floriano Peixoto, o marechal do título, temos a proclamação da república pelos militares, por vontade própria, e a destituição dos dois primeiros presidentes, Deodoro e Floriano, pela Armada. Mais perto da atualidade, por outras personagens, o romance nos apresenta uma situação anterior ao impeachment de Dilma Rousseff, figura defendida pela cozinheira, em narração em primeira pessoa, e pelo professor, ambos inominados.
Apesar desses tempos bem marcados pelo distanciamento entre si, é fato que, quanto à parte concernente ao marechal, vemos um ensaio de cronologia, de modo que, através dos cinco capítulos (ou “fases”) do romance, temos uma ilusão de biografia. O marechal de costas, certamente, não se encaixa na nossa definição comum de texto biográfico, aquele que apresenta e talvez até louva o retratado. Seu trabalho formal, que contrapõe não só os dois tempos citados, mas também discurso ficcional e intertexto biográfico ou historiográfico, nos mantém com eficácia no terreno da literatura. As citações dos biógrafos, sejam de Floriano, sejam de Napoleão Bonaparte, adorado pelo primeiro, não servem como argumento de autoridade, mas sim como fragmento que compõe o discurso literário, esse agrupamento de vozes, cada uma com seu espaço.
Complexidades
Embora esteja de costas para outros (talvez o povo), o marechal, ao longo do romance, se aproxima progressivamente de uma outra pessoa, no caso, morta: Napoleão Bonaparte. Como paradigma norteador de suas ações, inclusive por vezes como que corporificado no campo de batalha com o marechal, na Guerra do Paraguai, o famoso imperador dos franceses representa o líder para além da fachada, em suas fraquezas de ser humano que sofre com sua mortalidade. Desde os tempos de jovem soldado de sonhos — até mesmo eróticos, com uma inesperada menção à masturbação e descrições libidinosas de sua irmã e depois esposa —, observa-se que aquele que seria chamado de “consolidador da república” procurava em um monarca o seu ideal. Na transição brusca para esse novo período, Floriano se manteve leal a quem fosse, segundo seus princípios para a liderança. O militar que acompanhamos crescer no romance se torna, enfim, alguém carregado de complexidades.
Essa mesma carga de paradoxos se reflete na situação política recente, ao menos em relação às personagens da atualidade, dr. Ramil, Ramil Jr., a cozinheira e o professor. Ainda que seu enredo ocupe menos espaço no romance, esse contraponto temporal é muito eficiente no que se refere à variedade de perspectivas sobre o que seriam possíveis atentados à república. A cozinheira e o professor defendem a permanência da presidenta no cargo, ainda que a primeira, narradora, afirme a todo tempo sua falta de diálogo com o segundo. Nitidamente, há uma ironia no retrato do professor, com constantes latinismos e outras citações pernósticas, acompanhadas sem compreensão pelo pai e pelo filho, que o convidaram para assistir a um protesto. Não fica claro a que data se referem, mas o contexto é o início do segundo mandato de Dilma Rousseff, cujos discursos são citados em meio ao romance. Dr. Ramil e Ramil Jr. são caracterizados como conservadores, ligados a uma classe média alta, longe do contexto em que cresceu a cozinheira, como evidenciado pelos seus conflitos de entendimento. Essas passagens propriamente ficcionais se firmam no diálogo com o período histórico em que se insere Floriano por essas dinâmicas de poder entre o povo e uma autoridade. Para além de uma simples comparação, os dois tempos exercem forte papel na leitura um do outro, o que nos faz reavaliar a natureza do marechal ao conhecermos a cozinheira e seu mundo.
Por esse misto de biografia, comentário, ficção e ensaio, o novo livro de José Luiz Passos se assemelha, em certa medida, ao romance A arte francesa da guerra, de Alexis Jenni. A interposição dos gêneros textuais citados e também de tempos — no caso do escritor francês, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Golfo — parece, ao invés de gerar confusão, mostrar como nossa percepção sobre os acontecimentos varia de acordo com o ponto de vista. Passos, também sobre o tema do poder, como Jenni, parece instigar o leitor de forma mais brutal a explorar a expressividade dos discursos por meio do emparelhamento de vozes narrativas diferentes entre si. Em um momento, lemos um narrador onisciente, que busca em biógrafos e historiadores as fontes de seu conhecimento; em outro, a cozinheira, suposta descendente do marechal, descreve suas agruras com a família que lhe contratou. Para reforçar o desafio à leitura, observa-se o apagamento das marcas tradicionais de diálogo, como o travessão. Para se entender nossa complexa formação histórica e política, Passos nos mostra, por meio da criação literária, que há de ser também complexo no discurso.
Ao fim, pode-se dizer — ou tentar dizer — que O marechal de costas é quase um ensaio, assim como outros textos do autor. Por meio da ficção sobre a conhecida figura de Floriano Peixoto, introduzem-se outras personagens, em especial as do tempo atual, para apontar reverberações do marechal na história brasileira, que, evidentemente, têm consequências nos nossos rumos políticos. Destacamos o último parágrafo, um dos mais intrigantes sob o aspecto enunciativo, pois não conseguimos lhe atribuir com certeza uma voz do romance. De todo modo, o que resta é a proposta de que a presença da estátua de Floriano na praça homônima no Rio de Janeiro, a famosa Cinelândia, em meio a revoltas populares, demonstra que a autoridade ainda nos rege de modo firme, para o bem ou para o mal, a depender da leitura do romance e da história.