Ensaio sobre a pequeneza

Em "As pequenas memórias", há muito pouco da prosa competente e atraente de José Saramago
Saramago nos deixa com a sensação de incompletude, de que poderia ter feito mais.
01/12/2006

Há dois formatos básicos de autobiografias ou livros de memórias escritos por autores consagrados — com algumas nuanças intermediárias, é claro. Um deles é a simples narração de fatos de forma linear e ordenada, com começo, meio e fim e passeios básicos pelos relacionamentos e bastidores de feitura das obras. Um modelo quase jornalístico, que até o mais incauto ghost writer poderia perpetuar. O segundo formato, bem mais interessante, é o que se aproxima da obra de ficção do autor, podendo inclusive se passar por uma delas. Aqui não há grandes obrigações com a linearidade ou com a seleção dos fatos relatados, com a possibilidade de referir-se apenas a determinado aspecto ou época da biografia. E o texto é mais bem trabalhado; quase uma extensão da prosa mesmo, e em alguns casos à altura dela. Entre os bons exemplos de livros desse formato estão A pessoa em questão, de Vladimir Nabokov, Origem, de Thomas Bernhard, e Antes do fim, de Ernesto Sabato.

José Saramago acertou em escolher o segundo modelo para seu recém-lançado volume de memórias. As pequenas memórias aborda os primeiros quinze anos de vida do português, Prêmio Nobel de 1998. Estamos na aldeia de Azinhaga, na região do Ribatejo, que naquela época (entre 1922 e 1937) era marcada pela presença dos olivais, hoje raros por ali. Saramago, ou Zezito, era filho de um humilde policial, José de Sousa (cujo apelido era Saramago; um escrivão bêbado registrou o filho com este sobrenome e, embora não gostasse dele, mais tarde o pai acabou adotando-o). Em uma família em que mal se podia ler, o autor foi um prodígio, se pensarmos em tudo que conseguiu. O projeto de relembrar sua infância é bem antigo: remonta à época de Memorial do convento. A idéia inicial, ambiciosa, envolvia o estudo das tentações humanas e envolveria o quadro Santo Antão, de Hyeronimus Block, em comparação aos medos e tentações do próprio Zezito.

Por fim, o que prevaleceu foi o relato de infância e juventude. Pela ambição menor que a original, Saramago enxerga nelas “nada de muito importante”. Por isso o título, As pequenas memórias, explica. “As memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente.” Aqui reside o grande problema do livro: excesso de pequeneza. Saramago, ou por preguiça ou por incompetência mesmo, chafurdou na banalidade dos acontecimentos e não conseguiu (ou não quis, vai saber) extrair deles qualquer substrato que faça a leitura valer a pena. A começar pelo próprio texto. A abertura é boa, uma contextualização sobre Azinhaga em que o autor nos leva para os campos de oliva com a competência de seus melhores romances. É o trecho mais longo do livro. E embora não traga os tais diálogos ágeis e separados por vírgula que fizeram a fama de Saramago (batidos, mas que rendem momentos adoráveis), sustenta-se no estilo digressivo e circular que caracteriza o português. E só de não repetir aquela abordagem alegórica que ele vinha fazendo em sua ficção — que começou ótima com Ensaio sobre a cegueira, mas caiu numa fórmula — já merece aplausos.

Só que a partir daí os trechos-capítulos diminuem consideravelmente de tamanho, e As pequenas memórias vai por água abaixo. Ao invés de histórias completas, Saramago se contentou em compilar um punhado de anedotas e pequenos causos, que se pretendem engraçadinhos e são quase sempre esquecíveis. Em suma, faltou dramatização. Isso ocorre, em boa parte, por causa da extensão mínima dos relatos, da escolha pelo episódico e pelo fragmentário. Quando a história começa a engrenar, termina. Em Origem, Bernhard explora cada canto de uma opinião ou evento por meio da circularidade, do vaivém de sua prosa. Saramago nos deixa com a sensação de incompletude, de que poderia ter feito mais. É o que ocorre em episódios como o da vizinha Pezuda ou das primeiras sessões de cinema. Um exemplo da brevidade e superficialidade dos episódios:

Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem exceção, acabavam ao fim de sessenta segundos…

E é só isso, mal deu tempo de fugir do lugar-comum. Tudo bem, é um dos exemplos mais curtos do livro, mas o espírito é quase sempre esse. À parte anedotas isoladas que divertem (a já citada confusão do pai que adotou o sobrenome Saramago, o tio ciumento que assassina a esposa), As pequenas memórias só engrena — e ainda assim com percalços — quando chegamos à adolescência do escritor e têm lugar as histórias de escola. Coincidência ou não, aqui os relatos crescem um pouco de tamanho também, junto com a qualidade. De qualquer maneira, tarde demais para salvar o livro. A diferença de tamanho indicaria que Saramago lembra menos da infância do que da adolescência? Seria uma triste explicação para o livro não funcionar. É interessante (se bem que um tanto melancólico), todavia, ler as confusões escolares e pensar no quanto As pequenas memórias teria ficado melhor se seguisse outro caminho.

Entre esses caminhos estaria a opção de estender o livro, ir até os primeiros anos da idade adulta, já que Saramago parece se lembrar muito mais dos anos posteriores. Em entrevista recente, em divulgação a este volume, o gajo revelou que, em sua juventude, era salazarista. Uma informação de peso, e sem dúvida ele sabe disso. Então, por que esta e muitas outras não aparecem em As pequenas memórias? É chato — desagradável até — cobrar de um autor algo que ele sequer se propôs (lembrando são apenas memórias de infância e adolescência) a fazer, e se aqui o faço, é por notar um potencial mal aproveitado. A impressão que ficou é que ele relutou em colocar a revelação no livro e só a fez em público como marketing, afinal, depois que Günter Grass trouxe a público seu passado na juventude hitlerista, qualquer declaração soa insignificante. Vendem-se livros sem afetar a reputação. Outra coisa que falta são fatos que façam a existência do livro ganhar sentido. Saímos da leitura com a sensação que não aprendemos nada de novo sobre José Saramago. O único momento em que quase chegamos lá é em seus momentos de culpa, por gula ou travessuras, de uma forma bem católica. Não deixa de ser curioso perceber isso no autor de O evangelho segundo Jesus Cristo.

A certa altura, ele transcreve um trecho do seu primeiro poema, escrito aos dezoito anos: “Cautela, que ninguém ouça/ O segredo que te digo:/ Dou-te um coração de louça/ Porque o meu anda contigo”. A convivência excessiva com a cautela, pelo visto tirou de As pequenas memórias a coragem necessária de enfrentar episódios mais relevantes. Faltou audácia. Alguém poderá argumentar que um dos grandes temas da literatura é o banal. Verdade, e um autor como Tchekhov só corrobora a afirmação. Mas existem formas e formas de tratar o banal, e a grandeza do autor russo (ou de Machado de Assis, em seus contos magistrais), por exemplo, está em torná-lo épico, dar a acontecimentos insignificantes dimensões continentais. Saramago não faz isso. Talvez não tenha entendido que escrever sobre coisas pequenas não significa dar a elas um tratamento pequeno.

As pequenas memórias
José Saramago
Companhia das Letras
144 págs.
José Saramago
Nasceu em 1922, na província do Ribatejo, em Portugal. Devido a dificuldades econômicas foi obrigado a interromper os estudos secundários, tendo a partir de então exercido diversas atividades profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista, entre outras. Romancista, teatrólogo e poeta, em 1998 tornou-se o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Nobel de Literatura. É autor de O ano da morte de Ricardo Reis, A caverna, Ensaio sobre a cegueira, O homem duplicado, As intermitências da morte, entre outros.
Jonas Lopes
Rascunho