Ensaio sobre a indefinição

As reflexões de "O homem sem qualidades", do austríaco Robert Musil, continuam essenciais para a nossa época
Robert Musil, autor de “O homem sem qualidades”
28/01/2019

O título em alemão é mais clarividente a respeito desta obra-prima inacabada do que as traduções que o sucederam em variadas línguas: Der Mann ohne Eigenschaften, do austríaco Robert Musil (1880-1942), só é O homem sem qualidades quando a palavra “qualidade” [Eigenschaft] significa aquele conjunto de características próprias que se pode atribuir a algo ou alguém para torná-lo definido. Ou seja, Ulrich, o personagem principal dessas mais de 1.200 páginas que ganham nova edição na coleção Biblioteca Áurea em tradução já clássica de Lya Luft e Carlos Abbenseth, não é, portanto, um sujeito destituído propriamente de moralidade, mas uma figura que, atravessada por um tempo em profundas convoluções — como também parece ser o nosso atual —, se vê açoitado pela angústia da indiferenciação e das possibilidades. O conteúdo e a forma são a senha sem a qual não se entende o Musil deste livro.

Não muito diferente à vida do próprio escritor, o matemático Ulrich começa o romance em profundas dificuldades financeiras (como esteve o artista em várias ocasiões) e, com a ajuda de um severo pai que só conhecemos pelas determinações de suas cartas (num estilo até muito parecido ao do pai do autor), passa a trabalhar como secretário na Ação Paralela, um movimento aparentemente espontâneo que tenta unir a burguesia austro-húngara, a decadente aristocracia com seus generais e um povo que entraria, no final de tudo, apenas como massa e volume, para celebrar o jubileu de 70 anos de reinado do imperador Francisco José I. Como se sabe, o evento, que deveria se realizar em 1918, jamais acontecerá. Havia uma Primeira Guerra no meio do caminho, e Francisco José cai do trono já em 1916. Por isso as anotações que Musil faz em 1932, em seu diário, deixam a nu a espinha dorsal do livro: “Ideia central: a guerra. Todas as linhas desembocam na guerra”.

Os três grupos de personagens que estruturam a obra deixam isso visível: Clarisse e Walter, amigos de longa data com os quais se estabelece um triângulo amoroso frustrado, em que a moça pensa até mesmo em matar Ulrich — e diz isso a ele; a família judia Fischel, cuja filha, que anseia por um casamento com nosso protagonista, está amigada com jovens antissemitas de extrema-direita; Ermelinda Tuzzi, a prima que ele chama de Diotima e se transforma na cabeça da Ação Paralela, unindo num entusiasmo ingênuo as sombras de um mundo que, em breve, não mais será. Correm por fora ainda o assassino em série Moosbrugger, um sintoma dos tempos, e Ágata, a irmã que surge apenas na terceira e última parte e por quem Ulrich, que renega a amante Bonadeia, de fato se apaixona. Esses nomes todos, e mais outros, representantes de uma ordem, uma honra, uma pátria, configuram certa existência em que a alma está borrada. E alma ele define como “aquilo que os tempos atuais perderam ou que não se harmoniza com a civilização; aquilo que está em conflito com os impulsos físicos e os hábitos matrimoniais; aquilo que se excitava diante de um assassino, e não só com repulsa; aquilo que deveria ser liberado através da Ação Paralela”. O ser humano que vivia às vésperas da guerra perdeu o que lhe sobrava de definição crucial: “Falta ao mesmo tempo tudo e nada; é como se o ar, ou o sangue, tivesse mudado; uma doença misteriosa devorou a pequena genialidade dos velhos tempos, mas tudo cintila de novidade, e por fim não se sabe mais se o mundo realmente ficou pior ou se apenas nós ficamos mais velhos. Então definitivamente chegou uma nova era”. E, mais adiante, escreve ainda: “Surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivência sem quem as vive, e quase para que, num caso ideal, o ser humano já não vive mais nada pessoalmente”. O que resta a essa criatura que tem diante de si um presente confuso, um presente que relê o passado conforme suas contingências e projeta um futuro não menos angustiante? Clarisse, Diotima, Ágata, Moosbrugger, o general Stumm von Bordwehr, o burguês alemão Arnheim são eles pais e filhos da guerra — e também Ulrich.

Totalidade indefinida
É assim que este livro, com estes personagens e estas mínimas situações (a segunda parte chama-se A mesma coisa acontece, isto é, nada), só pode ser mesmo eivado de ironia: estão ali discutindo um Ano Universal da Paz capitaneado pela Áustria, casamentos, talento para tocar piano, jantares, viagens, engajam-se em longas conversas, animadas reuniões, teorias e teorias sobre a vida, quando a Europa está às portas de sua primeira guerra total — em que a noção de campo de batalha perde o sentido porque tudo é alvo. Ação Paralela só pode ser, nesse contexto, uma excelente denominação sarcástica. Não há verdadeira ação. Tudo está estático. Mas se move. O conde Leinsdorf, por exemplo, o aristocrata responsável por avaliar sugestões para o evento do jubileu, nada decide, ou melhor, decide por não decidir nada agora, e as cartas com ideias estapafúrdias se acumulam. O próprio fato de ser um romance inacabado se torna uma ironia involuntária — o mundo se desencantou, a alma sumiu, a nova era é indefinida, o futuro é cheio de possibilidades, inclusive, ou principalmente, de guerra e desesperança. Ulrich, aliás, nós, é, portanto, o homem de moralidade imprecisa que está dentro de um livro sem final.

Mas, nos primeiros planejamentos de Musil, havia se delineado um desenlace para a trama. Segundo uma nota à edição brasileira, Ulrich liberta Moosbrugger da prisão, Clarisse enlouquece e o amor incestuoso se conclui com os envolvidos desesperados. Os apontamentos de Musil são matéria-prima para se recompor não apenas a racionalidade com que ele trabalhou o manuscrito, mas também como a razão está, de alguma forma, imbricada no tecido mesmo do projeto. Os primeiros comentários sobre o livro datam já de 1914, mas a redação começa mesmo na década de 1920 e se estende até 1942, o derradeiro ano do autor entre os vivos. A intelectualidade europeia da época, Musil incluído, havia percebido que a narrativa tradicional não dava conta de expressar o mundo fragmentado e buliçoso que entrava no século 20. O que marca O homem sem qualidades é, portanto, também a busca por uma maneira de narrar que não se resumisse às personalidades, mas estivesse em profunda conexão com a multiplicidade da experiência da vida. Musil chegou ao ensaio como esse gênero híbrido entre a ciência dura que estabelece um discurso sobre o real e a pura especulação metafísica; só o ensaio erigiu, para ele, a ponte entre seus personagens e a totalidade indefinida que procurava. Por isso capítulos e mais capítulos estão inteiros dedicados à divagação ensaística. Não são um apêndice à história, mas a própria história. É na abertura promovida por tal mecanismo que mora a deixa de Musil para entender os tempos atuais e a literatura: a ficção não pode tudo, mas, ao se unir a outras formas de pensamento, daí sairá um modo de expressão que capta a barafunda da nova vida em sua complexa totalidade. Porque o austríaco é desses romancistas totais que morreram com o século 20 — hoje, a totalidade na literatura parece ser considerada uma brincadeira vã de imaturos ainda ignorantes do fato de que nada dessa natureza é possível.

Não há significado evidente para Musil. Tudo pode ser dissecado (e é). Tudo merece ser discutido e analisado. Os personagens, por exemplo, são reapresentados ao leitor várias vezes, em camadas. Quinhentas páginas após a primeira linha do romance figuras que já conhecíamos ganham novas visadas. Ideias são amiúde revisitadas, e o que se havia descartado antes como inconveniente ou intempestivo volta como farsa. Discorre-se sobre arte, linguagem, história, espírito, filosofia, ciência. Mas é errado pensar que o narrador opera como divagação e interrupção ensaística no meio da narrativa, porque, em realidade, o próprio plano dos acontecimentos, nesse vaivém infindo, surge à luz como ensaio e possibilidade. O livro de Musil não envelheceu com as décadas. Em especial porque aquela época de ebulição são também os nossos dias. Talvez sejamos todos nós membros desta Ação Paralela, organizando a comemoração de uma paz que nunca se realizará.

O homem sem qualidades
Robert Musil
Trad.: Lya Luft e Carlos Abbenseth
Nova Fronteira
1.248 págs.
O papel mata-moscas e outros textos
Robert Musil
Trad.: Marcelo Backes
Carambaia
180 págs.
Robert Musil
Nasceu em Klagenfurt, na Áustria, em 1880. Estudou engenharia, mas, em 1908, defendeu tese no departamento de filosofia. Combateu no exército austríaco durante a Primeira Guerra e chegou a ser condecorado como capitão. Durante o nazismo, teve livros proibidos e precisou fugir para Genebra, onde viveu com a esposa até 1942, quando morreu. A posição dele sobre o nazismo foi considerada ambígua, o que lhe angariou críticas. Publicou também livros de contos e de ensaios.
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

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