Enquanto a literatura não vem

Resenha do livro "Nu & vestido", organizado por Mirian Goldenberg
Mirian Goldenberg, organizadora de “Nu & vestido”
01/05/2002

A maior parte dos prosadores, e dos poetas, que surgiram na década de 90 parecem incapazes de traduzir e pensar temas contemporâneos. Dá a impressão de que esses “artistas” ainda não encontraram temática e, por esta razão, escrevem por escrever. O resultado são enredos frouxos ou ausência de enredo (alguns doidivanas crêem estar cometendo “pequenos poemas em prosa”), egotrips, pontos de vista equivocados denunciando tola visão de mundo. Há até quem preencha páginas com figurinhas alegando ser vanguarda. E muito literato recém-alfabetizado se apresenta como experimentalista ou pós-moderno. É raro encontrar algo consistente em meio aos lançamentos, sobretudo de estreantes. Nesta safra ingrata, é uma obra de não-ficção que se sobressai.

Nu e vestido, organizado por Mirian Goldenberg, junta textos de dez antropólogos que estudaram o corpo no Rio de Janeiro. Uma vez que os costumes, as manias e as modas dos cariocas são disseminados para o restante do país, sobretudo por meio dos programas de televisão, a abrangência do assunto é, no mínimo, nacional. O corpo está em pauta no mundo contemporâneo, sendo discutido na dança, no teatro, no cinema, nas artes plásticas, na música e até mesmo na literatura.

Cada capítulo apresenta alguma questão relacionada ao tema, sendo que a principal discussão trata da importância que o corpo adquiriu em nossa sociedade. Depois que a mídia elegeu o corpo magro e musculoso como padrão de beleza, ou melhor, artigo de consumo obrigatório, tal padrão transformou-se em moeda de troca em todas as relações. E quem não exibe as medidas exigidas acaba sendo, ou se sentindo, marginalizado neste mundo em que a aparência é tudo.

Entrevistas e depoimentos informais revelam que para se obter um corpo desejável os fins justificam os meios. Freqüentar academias de ginástica diariamente, ingerir anabolizantes e outras drogas, até mesmo se submeter ao bisturi de um cirurgião plástico compõem a atual via-crúcis do corpo. E todo esforço será pouco para esculpir uma silhueta perfeita, objeto inatingível.

O livro põe em xeque a idéia, disseminada entre alguns jovens escritores e jornalistas, de que mestres e doutores produzem apenas textos prolixos e herméticos. Os ensaios reunidos em Nu e vestido destacam-se, além do conteúdo, pela linguagem concisa, rápida e transparente, compreensível para todo e qualquer leitor. O único senão são os dois últimos capítulos, um sobre bruxaria e o outro sobre mercado alternativo de moda, que poderiam ser suprimidos, sem nenhum prejuízo à obra. Pelo contrário.

Neste momento, quando as questões contemporâneas são discutidas principalmente por ensaístas, não será um sinal de que os ficcionistas estão, no mínimo, desconectados da realidade? Por que neo-escribas elegem temas como violência, escatologia e pseudodramas existenciais, voltando o olhar para questões pequenas, por exemplo, para o próprio umbigo, sem se dar conta da existência do corpo? Até agora, nenhum prosador brasileiro propôs uma discussão ampla sobre o tema, nem mesmo em segundo plano, a exemplo do escritor norte-americano Don DeLillo, que, em A artista do corpo, apresenta uma protagonista praticante de body art.

Dá a impressão de que o sucesso pelo sucesso é o que move esses novíssimos pseudo-escritores e pseudopoetas, ávidos pelo reconhecimento antes mesmo da construção de uma trajetória baseada em obras consistentes. Quando surgirá um ficcionista capaz de, realmente, traduzir os dramas, as tensões e as tragédias cotidianas em literatura? Até lá, sacia-se a fome com os raros, mas consistentes, ensaios.

Nu & vestido
Organização Mirian Goldenberg
Record
418 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho