Enorme modernidade

Helena Kolody, poeta maior, falecida no último 15 de fevereiro, soldou os tempos da literatura paranaense
Helena Kolody: poesia curta, verbo despretensioso, leveza das palavras e simplicidade
01/03/2004

No rodapé Revistas, publicado nos Diários associados e transcrito na revista Joaquim nº 3 (Curitiba: julho de 1946), Antonio Candido, falando do papel crítico exercido pelos jovens unidos em torno de Dalton Trevisan, que promoviam um rompimento com a tradição paranaense de uma “literatura raio-de-luar”, lembra que nosso estado irradiara “um dos movimentos mais medíocres que tem infestado [a literatura nacional], apadrinhado por Nestor Vitor, Rocha Pombo, Emiliano Perneta e logo acolitado por uma série de então jovens poetas e escritores, logo tornados paranaenses honorários quando não o eram de nascimento. O seu vago espiritualismo, o seu desfibramento criador, unido, aliás, às melhores intenções, e geralmente, aos melhores caracteres pessoais, deram cabo de nosso pobre simbolismo nacional e, felizmente, enfraqueceram os arrancos neocatólicos e reacionários a que se atrelou a maioria daqueles excelentes rapazes” (p. 11). Ou seja, o Paraná, ao alimentar extemporaneamente uma literatura espiritualista medíocre, prestou um grande serviço para a cultura moderna, pois foi responsável pelo fim dos movimentos de uma direita católica, que fazia oposição ao caráter sociológico e à inventividade da arte moderna. Assim, o simbolismo paranaense que envenenara a cultura nacional serviu como antídoto contra o poder espiritualista.

Se a influência desta literatura de matriz simbolista foi decrescente na produção nacional, ela é contínua no Paraná, onde ainda existem representantes provincianos. Em muitos sentidos, infelizmente, aqui ainda se produz uma literatura à maneira simbolista, perdida neste culto ao vago, ao academicismo vazio e aos temas da poesia raio-de-luar. Uma literatura, tal como na época em que se pronunciou Antonio Candido, feita por gente com as melhores intenções. Nosso pseudo-simbolismo é uma sombra crepuscular, longa e estreita, como a que produz uma centenária araucária no fim da tarde.

Estreando em 1941 (Paisagem interior), momento em que a influência destes jovens espiritualistas ainda era muito forte, e trazendo um catolicismo eslavo de grande autenticidade, Helena Kolody (1912-2004) não poderia deixar de pagar imposto a esta corrente, que vai definir grande parte de sua poesia e de seu público leitor. Ela será espiritualista até o fim de sua vida, mas, paralelamente, vai rompendo com valores acadêmicos, dotando sua obra de um valor moderno. Seus primeiros livros pecam pelas formas tradicionais e pela vaguidão, mas já na sua estréia ela trazia os poemas mínimos, de uma singeleza quase infantil, que constituirão sua face contemporânea. Em Paisagem interior, além de três haicais, há alguns textos mais curtos, no quais ela se livra do peso das imagens e das palavras simbolistas, ficando apenas com sua essência.

Embora o poema sintético tenha sempre estado presente em seus livros, podemos tomar o volume Vida breve (1964) como um divisor de águas. Neste livro, a consciência da brevidade de tudo leva a poeta a se identificar, prioritariamente, com o verbo sucinto, que produz maravilhas poéticas como Cisterna:

 Nem o bailado leve das avencas
Consola a água prisioneira.

Dentro de sua dicção simbólica, embora pouco simbolista, ela vai modificando a apresentação de seus poemas, o seu design — como notará Paulo Leminski.

Mesmo sendo prioritária, a síntese convive com o verso convencional nos livros posteriores, para se tornar central em Infinito presente (1980), momento em que poeta passa a participar da mudança literária da poesia paranaense, que afirma sua face jovial, embora Kolody, por sua natureza conciliadora, jamais tenha rompido com a recepção tradicionalista que a acompanhou por toda a sua longa e luminosa carreira literária.

Desmembrando o título deste livro (Infinito presente), percebemos a condição duplex da poeta, fiel ao tema da infinitude, que a liga à velha tradição lírica paranaense, mas também ao presente. Esta adição das duas faces permite à poeta uma participação de dois tempos e dois públicos, sem que precise romper com o passado de que descende, mas também sem negar o agora, do qual não quer se ausentar.

Na década de 80, Helena Kolody torna-se, impulsionada pela força jovial avessa às pompas literárias, o grande ícone da poesia do Paraná, liberada da imagem de passadista, determinante em sua produção anterior. Ela conquista a jovialidade pela poesia curta, pelo verbo despretensioso, pela leveza das palavras, por sua simplicidade, na esteira de um Manuel Bandeira e de um Mário Quintana, reformulando modernamente a herança do espiritualismo simbolizante.

No Brasil, vivia-se a alegria da abertura política e as editoras estavam publicando autores que contestavam toda forma de convencionalismo, era a explosão do mundo pop, de uma cultura incorporadora, que aceitava tudo. É neste clima que a poética de Helena Kolody passa a ser referencial pelo culto à palavra em estado de síntese. Veja-se o dístico intitulado Poeta: 

O poeta nasce no poema,
inventa-se em palavras.

Prevalece, para ela, a identidade do texto e não a biográfica, num exemplo de modernidade de concepção que justifica a aceitação jovem que vai alimentar, a partir deste momento, toda a sua produção. O poeta/palavra será constituído na humildade (católica) lingüística. Helena livra-se de toda a pompa verbal, para se projetar nas palavras simples. Infinito presente é o último livro impresso pela própria autora, pois a obra seguinte, Sempre palavra (Criar edições, 1985), já tem um editor, o escritor Roberto Gomes, que trabalhará na afirmação editorial da autora. Note-se que o título é revelador, novamente pela ambigüidade, mas uma ambigüidade que dá prioridade a um sentido. Não é a palavra sempre, ligado ao infinito, mas o inverso, a defesa do poder permanente da palavra. Afirmação da poesia, do poeta/palavra, embora não se descarte a filiação simbolista latente neste termo do vocabulário espiritualista que é sempre.

Helena, editada pela Criar, deixa de ser uma poetisa paranaense, não só por conseguir um público nacional, mas também, e principalmente, por não se identificar mais com aquilo que Antonio Candido chamou de “desfibramento criador”. A sua poesia passa a ser medular, e ela recebe a canonização da modernidade nas palavras sacramentais do poeta que era a imagem da poesia jovem naquele momento — Paulo Leminski.

Em artigo publicado no Correio de Notícias de 26 de agosto de 1985, Leminski a elege “a padroeira da poesia de Curitiba”, reconhecendo assim seu vínculo com o Simbolismo, mas valorizando antes de tudo o trabalho com a linguagem: “Nossa padroeira é o poeta [e não poetisa] mais moderno de Curitiba, de uma modernidade enorme, uma modernidade de quase oitenta anos. Nenhum de nós tem modernidade deste tamanho. Nossa padroeira nunca se casou. E viveu a vida toda com a mãe e as irmãs, seu tesouro eslavo de afetividade e dedicação. Vida. Esse é o assunto de Helena Kolody. Não é à toa que nossa mestra é professora de Biologia. Mas tudo isso que eu digo não passaria de efusão sentimentalóide, se a poesia de Helena não se sustentasse em nível de linguagem, de design, de essência. […] ‘Essências e medulas’, assim definia Pound a poesia. E esse era o nome que eu daria para um ensaio sobre a poesia de nossa padroeira”.

Ela passa a fazer parte de um paideuma jovem, participando do banquete teórico de Pound, por meio de uma valorização empreendida por um discípulo crítico dos concretistas, que lhe abre uma possibilidade de recepção dentro da vanguarda, apesar de todo o lastro tradicionalista de sua poesia anterior, da qual ela se afasta programaticamente no livro seguinte, que não só vai seguir a mesma trilha do Sempre palavra, como vai radicalizá-la. A nova coletânea se chama Poesia mínima (Criar, 1986). A poeta tinha encontrado definitivamente sua dicção e seu lugar na literatura brasileira.

Ela se afasta do passado, mas não o recusa, como já dissemos, e o livro seguinte, um recolheita de poemas esquecidos em seus cadernos, receberá o nome de Ontem agora (1991), que cifra, mais uma vez, a condição duplex da autora que solda tempos, gerações e poéticas. E ela segue em sua trajetória de modernidade, publicando seus haicais e tankas em Reika (1993), já eleita representante maior da poesia minimal.

Desde 1988, sua poesia completa está reunida no volume Viagem no espelho, cuja sexta edição (Criar, 2001), comemorativa aos 60 anos de estréia, traz 21 textos novos, também escritos neste espaço lírico em que eternidade e modernidade convivem numa poesia descarnada, tal como encontramos neste seco “Reta final”:

Já passaram todos.
Eu me atrasei na corrida.

Livre das filiações estéticas, das disputas de poder literário, a poeta, na verdade, não se atrasou, mas viveu o tempo em profundidade, sabendo que seu território era um agora disfarçado de sempre.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho