Começo este texto resgatando a importante carta enviada por Currer Bell, em 15 de fevereiro de 1848, a William Smith Williams, que entraria para a história como o editor responsável por descobrir Jane Eyre. Na missiva, Bell afirmava considerar seu irmão Ellis uma espécie de teórico, capaz de abordar ideias mais originais do que práticas, o que o levava a concluir: “Eu diria que Ellis não será visto em sua força plena até que seja visto como um ensaísta”. Como sabemos, Acton, Currer e Ellis foram os pseudônimos adotados pelas irmãs Brontë para a edição de seus poemas, em 1846, e com os quais elas assinariam também seus romances; o artifício se impunha porque, como mais tarde ressaltaria Charlotte, as escritoras estavam cientes de que obras de autoria feminina eram habitualmente analisadas de maneira tendenciosa. Vale notar que não há ali nenhum prenome masculino; como também observa Charlotte, as irmãs optaram conscientemente por uma solução ambígua, utilizando nomes familiares como se fossem prenomes. A verdadeira identidade das autoras só seria revelada em 1850, quando Charlotte prepararia novas edições de O morro dos ventos uivantes e Agnes Grey, já após as mortes de Emily e Anne.
Dito isso, retorno à carta de Charlotte para W. S. Williams, que evoquei precisamente a fim de chamar atenção para a complexidade da produção literária de Emily Brontë. Ao ressaltar uma dimensão ensaística essencial à sua escrita, enfatizando a sofisticação das ideias nela presentes, Charlotte sugere algo que a tradição crítica acabaria por reconhecer e abordar com cada vez maior ênfase: o sentido profundamente inovador desta obra que tanto estranhamento causaria aos primeiros leitores. Karen Laird observou que a produção propriamente ensaística de Emily (os nove textos produzidos durante a permanência na Bélgica, como estudante, no pensionato Heger) traz elementos que ressurgem em sua obra romanesca — Lettre, por exemplo, traria um precursor de Linton Heathcliff, e em Le Papillon teríamos um esboço de Lockwood —, e Janet Gezari constatou haver neles questões que seriam desenvolvidas de modo mais complexo em sua poesia. Não obstante, penso ser interessante destacar como a escrita ensaística de Emily, com sua austeridade moral, sua assertividade, sua misantropia e sua disposição ao enfrentamento de convenções sociais, evidencia a força de uma escritora que já nessa época — quando seus poemas não eram conhecidos nem por suas irmãs, meia década antes da publicação de O morro dos ventos uivantes — dispunha-se a fazer da linguagem um instrumento para expressar uma visão de mundo peculiar e em nada condescendente. Talvez seja possível supor que, para Charlotte, de algum modo nesses ensaios estava o essencial da obra produzida pela irmã — percepção em certa medida corroborada pela crítica, como há pouco mencionei. Julgo, ademais, pertinente destacar que a imaginação plástica presente nos ensaios de Emily, associada a uma argumentação que se impõe a quem os lê com uma franqueza por vezes brutal, operam como forças convergentes para a emergência de uma obra literária verdadeiramente assombrosa.
Diversos dos primeiros críticos que se debruçaram sobre os escritos de Emily Brontë sentiram-se impelidos a tratar de sua personalidade, traçando algum tipo de relação entre sua invulgar atitude e sua não menos singular produção literária. Conquanto nada justifique interpretações que se resumam a análises do texto literário fundamentadas exclusivamente em evidências biográficas ou em uma suposta psicologia autoral, é de fato tentador especular sobre em que medida os relatos daqueles que conviveram com a escritora podem evidenciar elementos de sua visão de mundo. Emily não parece ter sido, afinal, uma pessoa de fácil convivência, ou uma dessas pessoas cuja personalidade revela uma propensão para as obviedades. Com poucas exceções — Louise de Bassompierre, sua aluna de piano no pensionato Heger, considerava-a plus sympathique, embora moins brilliante que Charlotte —, a autora de O morro dos ventos uivantes foi descrita por seus contemporâneos como uma mulher esquiva e temperamental, pouco afeita a atividades sociais e obstinada a ponto de prejudicar sua própria vida; talvez o maior exemplo disso tenha sido sua hostilidade aos médicos, por ela considerados charlatões, e sua consequente recusa a receber qualquer tratamento quando contraiu a tuberculose que precocemente a mataria. Seria possível supor que Emily era, afinal, uma mulher tão “difícil” quanto é sua obra — o que é, basicamente, a noção subjacente à percepção popular de que a escritora era dotada de uma genialidade excêntrica, por isso incompreendida pelos próprios familiares? Há em uma suposição desse tipo bastante arbitrariedade; mais ponderado seria afirmar que conhecer sua literatura implica entrar em contato com uma sensibilidade singular, pouco afeita a convencionalismos e dotada de um raro talento artístico. Não por acaso, como observou Lucasta Miller, há um notável contraste entre a prosa diarística de Emily, que parece espontânea e direta, e sua densa obra literária, o que apenas evidencia a intenção estética subjacente à última.
Excelente oportunidade
As recentes publicações no Brasil da obra-prima de Emily Brontë e de uma antologia de seus poemas oferecem uma excelente oportunidade para que se conheça, ou se revisite, seu singular universo literário. Publicado pela Zahar em uma belíssima edição com capa dura, O morro dos ventos uivantes tem tradução de Adriana Lisboa, apresentação de Rodrigo Lacerda, notas de Bruno Gambarotto e importantes anexos — a nota biográfica e o prefácio à edição de 1850, ambos de Charlotte Brontë — traduzidos por Maria Luiza Borges. Trata-se de uma edição valiosa em diversos sentidos: o público leitor tem a possibilidade não apenas de conhecer uma nova e excelente tradução para o romance, mas também de dispor de preciosos recursos para a leitura graças às mais de noventa notas, muitas das quais citam obras capitais da fortuna crítica; o texto de apresentação traz relevantes dados biográficos e considerações sobre o contexto de publicação e a recepção do romance; e os anexos disponibilizam textos verdadeiramente indispensáveis para qualquer pessoa que deseje conhecer mais a fundo as condições de produção do livro. Merecem destaque ainda o belo projeto gráfico de Carolina Falcão, que atinge um elevado resultado estético valorizando o texto, e a capa de Rafael Nobre — cuja leveza foge ao previsível, e que, ao evocar os dois personagens centrais da obra, acerta ao sugerir uma associação entre Heathcliff e a natureza e ao figurar uma Catherine distante e evanescente.
Já O vento da noite consiste em uma antologia de poemas de Emily Brontë traduzidos por Lúcio Cardoso, antes publicados apenas em 1944 pela José Olympio, em uma edição luxuosa que contava com ilustrações de Santa Rosa. A Civilização Brasileira republica agora as traduções em edição organizada por Ésio Macedo Ribeiro, autor também de um sucinto texto de apresentação. Infelizmente, além da apresentação, o volume traz apenas o pequeno prefácio assinado por Cardoso, que reúne algumas observações biográficas sobre a autora, e o texto original dos poemas (extraídos da edição de 1908, sob responsabilidade de Clement Shorter, que apresenta equívocos corrigidos em edições posteriores, mas cuja escolha pode ser atribuída ao propósito de disponibilizar a mesma edição utilizada pelo tradutor brasileiro); seria interessante haver notas que pudessem evidenciar a riqueza da obra lírica de Emily Brontë, tão densa quanto poderosa. Assim, o valor do volume está essencialmente no resgate de traduções publicadas há mais de sete décadas, assinadas por um dos expoentes da literatura brasileira.
O morro dos ventos uivantes foi publicado em dezembro de 1847, e alguns dos primeiros textos críticos relacionados à obra evidenciam a estranheza com que foi recebida. Em janeiro do ano seguinte, um texto no Examiner qualificava o livro como “selvagem, confuso, desarticulado e improvável”; um mês depois, a estadunidense Paterson’s Magazine recomendava ler Jane Eyre, mas queimar o livro de Emily Brontë — cuja identidade, relembremos, não fora até então revelada, estratégia cuja eficácia podemos estimar por algumas das declarações publicadas acerca de Ellis Bell, aquela misteriosa figura que assinava o livro: um texto na Graham’s Lady Magazine, por exemplo, indagava como um ser humano fora capaz de escrever os capítulos de um livro como aquele sem cometer suicídio, e muitos questionavam o sentido moral do livro. De fato, mesmo hoje O morro dos ventos uivantes é uma obra atordoante em diversos aspectos, e continua a ser uma árdua tarefa compreender a trágica história e seus tão complexos personagens.
A autora de O morro dos ventos uivantes foi descrita por seus contemporâneos como uma mulher esquiva e temperamental, pouco afeita a atividades sociais e obstinada a ponto de prejudicar sua própria vida.
A tradição crítica vem demonstrando que o romance pode ser lido como a luta de Catherine Earnshaw contra as imposições de uma sociedade patriarcal, sua noção de “natureza feminina” e o lugar de dependência nela concedido à mulher; como uma narrativa em que uma primeira transgressão (a introdução de Heathcliff, o elemento estranho, em uma família convencional) origina uma série de outras transgressões, entre elas a relação simbolicamente incestuosa com Catherine; como a obsessiva luta do próprio Heathcliff para saciar seu desejo de unir-se a Catherine, mesmo quando ela não mais vive — isso entre outras incontáveis claves de leitura. Importa ressaltar, por outro lado, que a densidade de O morro dos ventos uivantes nada tem de acidental; entre os escritores e filósofos cuja presença estudiosos já perceberam no livro estão Byron, Shakespeare, Goethe, Schlegel, Hoffman e Novalis (vale lembrar que, enquanto esteve na Bélgica, Emily teve oportunidades para conhecer a filosofia e a arte alemãs), para não mencionar sua relação com o texto bíblico. Por fim, a estrutura da obra, com seus dois principais narradores em posições assimétricas — não apenas por conta dos gêneros, mas também por sua formação intelectual, posição social e pelo tipo de relação que têm com os habitantes de Wuthering Heights e Thrushcross Grange — faz do livro uma obra excepcionalmente complexa e suscetível a diferentes interpretações.
Os poemas reunidos em O vento da noite foram publicados no livro coletivo assinado por Acton, Currer e Ellis Bell, que resultaria em um enorme fracasso comercial; não obstante, ainda no século 19 Emily Brontë seria considerada uma poetisa importante, o que não ocorreu com suas irmãs escritoras. Tendo começado a escrever poesias ainda na adolescência (seus primeiros escritos do gênero datam de meados da década de 1830), Emily continuou a fazê-lo até muito perto de sua morte, produzindo uma obra lírica bastante mais extensa que as de Charlotte e Anne; de fato, já foram documentados cerca de duas centenas de poemas que lhe são atribuídos. Importa perceber que diversos dos críticos oitocentistas que analisaram a produção lírica de Emily Brontë qualificaram-na com termos similares aos utilizados por aqueles que escreveram sobre O morro dos ventos uivantes, e como muitos traçaram uma relação imediata entre a região onde a escritora viveu e as características de sua poesia. Por outro lado, também no que tange à produção lírica, a percepção de que a escritora era uma espécie de versão feminina do gênio excêntrico determinou interpretações estereotipadas e superficiais — algo percebido já por um crítico oitocentista como Angus MacKay, que a isso atribuía o fato de, a seu ver, Emily Brontë ser ainda uma poetisa subestimada, já que tantos insistiam em enfatizar uma suposta incoerência ou obscuridade em seus versos. É verdade que a poesia de Emily é tão desafiadora quanto seu romance (Janet Gezari chegou a indagar por que essa parte de sua obra foi deixada de lado pela crítica feminista, responsável por reabilitar tantas poetisas do século 19 — concluindo que Charlotte tinha razão ao afirmar que nenhuma mulher jamais escrevera poesias como sua irmã); não obstante, a percepção de que nada nela haveria além de crípticas imagens em versos indecifráveis está há muito superada. Nesse sentido, a tradução de Lúcio Cardoso pode favorecer uma aproximação, por dispensar métrica e rimas; livremente recriados, os poemas logram reter o sentido da poesia de Emily, mas têm seu áspero lirismo suavizado para a sensibilidade contemporânea. Um exemplo: onde no texto original lemos “O come with me, thus ran the song,/ The moon is bright in Autumn’s sky,/ And thou hast toiled and laboured long,/ With aching head and weary eye.”, lemos na tradução: “Oh! vem, segue-me, dizia a canção de passagem:/ A lua esplende, bela, nos outonos do céu;/ É tempo de vir./ Há muito esgotados por um trabalho inglório,/ Os olhos e a cabeça pedem repouso.// Vem!” Se é evidente a tentativa de preservar o espírito dos poemas originais, em certos momentos o que Lúcio Cardoso nos oferece é uma Brontë, embora mais acessível, mais domesticada.
Que a publicação de O morro dos ventos uivantes e O vento da noite possa ensejar, enfim, novas leituras para a singularíssima obra de Emily Brontë — que, como espero ter demonstrado neste breve texto, já facultou uma miríade de interpretações, e certamente jamais deixará de suscitar muitas outras. Em fins do século 19, A. M. Williams descrevia a escritora como uma jovem mulher com pouco conhecimento da literatura e da vida, o que não lhe impedia de reconhecer a qualidade de suas criações; hoje reconhecemos que, apesar da tenra idade, Emily era dotada de uma força intelectual assombrosa — capaz de produzir escritos que, mais de um século e meio após sua publicação, são ainda capazes de fascinar jovens leitores e motivar densos estudos acadêmicos. A mais misteriosa das irmãs Brontë foi, afinal, capaz de dar forma literária a enigmas que ainda hoje nos assolam e inquietam.