O início de O Ateneu está, indiscutivelmente, entre os melhores da literatura brasileira. Há algo de mágico na promessa paterna — “Vais encontrar o mundo” — e no incisivo estímulo que a encerra: “Coragem para a luta”. Pai e filho, à porta do colégio; o menino, Sérgio, apenas onze anos — mas aparentando seis (revelará, páginas à frente, Ema, esposa de Aristarco, diretor d’O Ateneu); a terrível promessa a pulsar entre os dois personagens, tão ampla que abraça todos os bens da vida — e todos os males. E de maneira a preencher essa expectativa dramática — na qual o leitor se vê enredado —, o comentário que abre o segundo parágrafo: “Bastante experimentei depois a verdade deste aviso (…)”.
É uma pena que não possamos recuperar o processo por meio do qual o autor chegou às linhas que abrem o livro e, também, as portas do mundo, substanciado no microcosmo do colégio. No entanto, o crítico Eugênio Gomes — infelizmente esquecido — descobriu, numa de suas pesquisas na Biblioteca Nacional, em 1951, o manuscrito do primeiro começo de O Ateneu. À parte as considerações de ordem estilística elaboradas pelo estudioso baiano — que podem ser lidas no volume Aspectos do romance brasileiro —, vale a pena transcrever o trecho:
Quando ele morreu fizeram parar o relógio na hora cruel — seis da manhã. O sol acabava de erguer-se abrindo sobre a terra a larga mão de ouro, bênção matinal da luz, sobre a ressurreição da vida — quando ele partiu para a eterna sombra. O mostrador imóvel parecia igualmente alcançado pela morte e a fixidez do ponteiro ampliava-nos a dor na alma, com a permanência implacável da recordação, sangrando rebelde ao tempo que cicatriza; como se para nós que o queríamos deve ficar a existência nada mais que o prolongamento intérmino daquela hora, eco imortal das seis pancadas trêmulas do velho relógio, culto sagrado e doloroso de uma memória.
Por esses dias excepcionais surgiram-me no espírito vivazes como nunca as imagens do passado, as lembranças principalmente da primeira mocidade em que mais senti a sofreguidão amorosa dos seus esforços, pobre amigo que chorava as minhas lágrimas e rejubilava das minhas alegrias, protegendo-me confiado e nobre, protegendo-me sempre com o entusiasmo nervoso do seu afeto, admirando-me na benevolência do seu grande coração esperançado, consolidando-me o caráter de menino pelo apoio enérgico da experiência dos seus provados anos.
Dois parágrafos sem dúvida inferiores ao período finalmente escolhido pelo escritor, que optou por sintetizar, no gesto de quem apresenta o mundo, os afetos descritos acima. Raul Pompéia recusa o saudosismo melancólico, as lágrimas melosas — e a teatralidade romântica dos ponteiros congelados do relógio. Não restou nenhum visgo de retórica, mas somente duas frases sóbrias que anunciam o futuro aberto à criança.
Sábias escolhas — infelizmente esquecidas no restante do livro. Logo depois da primeira frase do segundo parágrafo, o narrador já se destempera, acrescentando, por exemplo, o supérfluo advérbio “exoticamente” e o ornamento vazio da conclusão: “(…) Têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso”, que talvez soasse bem se colocada entre as descrições mesológicas de Os sertões.
Eloqüência forense
Certos pesquisadores contemporâneos dizem que Pompéia faz uso, sim, da retórica, mas para implodi-la. Ora, se o escritor de fato pretendia isso, a utilização abusiva do recurso fez o tiro sair pela culatra — levando consigo o suposto objetivismo dos que, em nome de teorias pretensamente positivas, refestelam-se na leitura metalingüística. Do mesmo modo, alguns ecologistas contemporâneos consideram dóceis os tubarões — mas tal avaliação narcisista não muda o caráter desses predadores.
Raul Pompéia não foi um predador, ainda que tenha apoiado cegamente o déspota Floriano Peixoto, mas seu alter ego n’O Ateneu, o Dr. Cláudio, hábil em fazer discursos rocambolescos sobre tudo e nada — se tal personagem fosse ressuscitado hoje, seria um adepto do New Age —, destila elogios rasgados à eloqüência, defendendo-a como força capaz de, na versificação, fazer as estrofes serem medidas “pelos fôlegos do espírito” e não “com o polegar da gramática”. Para ele, que aprecia repetir as imagens de gosto duvidoso do narrador, “o sentimento encarna-se na eloqüência, livre como a nudez dos gladiadores”.
E o próprio Sérgio, protagonista e narrador do romance, “assistente infalível” das sessões bimensais do Grêmio Literário Amor ao Saber, em que o dr. Cláudio discursava, confessa: “(…) Saía cheio com a retórica espigada, que ia espalmar, prensando no dicionário, conservas de espírito, relíquia inapreciável do Belo”.
Tais “relíquias” enxovalham a obra do começo ao fim, construindo um universo de preciosismo que, para ser compreendido, exige dicionários e enciclopédias — ou alguma boa edição crítica. Uma delas, disponível no mercado, soma quase 600 notas explicativas para doze míseros capítulos…
Nas primeiras páginas, o narrador recorda os dias que antecederam sua entrada no internato. A simples vida familiar transforma-se no “conchego placentário da dieta caseira” — e este é só o início de um longo discurso, no qual soldadinhos de chumbo e peixinhos deixam de ser divertimentos infantis para, aprisionados na linguagem fastuosa, decaírem à condição de imagens enfadonhas:
Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, — massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência adamantina da água…
Ao descrever uma demonstração pública de ginástica, durante a qual são realizados vários exercícios, Sérgio mostra seu poder de construir discursos vazios, qualificando os gestos disciplinados da turma como “a simultaneidade exata das extensas máquinas” — expressão sonora, grandiloqüente, mas que nada define. Na seqüência da cena, insatisfeito com a descrição irônica que faz de Aristarco, o narrador destrambelha, chegando a um de seus muitos delírios:
O figurino campestre rejuvenescera-o. Sentia as pernas leves e percorria celerípede a frente dos estrados, cheio de cumprimentos para os convidados especiais e de interjetivos amáveis para todos. Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para reaparecer mais viva noutro ponto. Aquela expansão vencia-nos; ele irradiava de si, sobre os alunos, sobre os espectadores, o magnetismo dominador dos estandartes de batalha. Roubava-nos dois terços da atenção que os exercícios pediam; indenizava-nos com o equivalente em surpresas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por ascensões cobrejantes de girândola [grifo nosso], que iam às nuvens, que baixavam depois serenamente, diluídas na viração da tarde, que os pulmões bebiam. Ator profundo, realizava ao pé da letra, a valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma do seu instituto.
Certo personagem tem suas convicções políticas “ossificadas na espinha inflexível do caráter”. As páginas do Capítulo 3, nas quais narra seus estudos, são maçantes; e para expressar o verdadeiro sentimento de suas pesquisas religiosas, comete esta aberração: “Eu bebi a embriaguez musical dos capítulos como o canto profundo das catedrais”. Pior que isso, só os piores sonetos de Cruz e Sousa… A visão dos garotos à noite, no dormitório coletivo, é uma fantasmagoria adequada ao que de mais grotesco o romantismo e a literatura gótica produziram:
Os colegas, tranqüilos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se depois por um desses longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de vôo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar de fora chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia-se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava-se igual sobre as camas, doçura dispersa de um olhar de mãe.
A linguagem forense beira a incompreensibilidade. Vejam como ele define sua “altivez” diante dos colegas:
Parece que às fisionomias do caráter chegamos por tentativas, semelhante a um estatuário que amoldasse a carne no próprio rosto, segundo a plástica de um ideal; ou porque a individualidade moral a manifestar-se, ensaia primeiro o vestuário no sortimento psicológico das manifestações possíveis.
E é preferível nada dizer sobre o amontoado de afetações e clichês que utiliza para descrever Ângela, empregada do colégio:
Exposta às soalheiras, revestia-se a cor branca do rosto de um moreno cálido, tom fugitivo de magnólias fanadas, invulnerável aos rigores de ar livre, como deve ter sido outrora a epiderme de Ceres. Ferissem-lhe a tez os dardos corrosivos da insolação, vinha-lhe apenas ao rosto um rubor mais belo, e não lhe tirava mais o sol à mocidade da carne do que à própria terra, sob a calcinação dos ardores: uma primavera de rosas.
(…)
E era do mal livrar-se. Começava por um jogo de virtude. Enxugava em ar de seriedade os lábios úmidos; as pálpebras, de longas pestanas, baixavam sobre os olhos, sobre o rosto, viseira impenetrável do pudor. Convidava à adoração colhendo aos ombros o manto da candura, refugiando-se na indiferença hierática das vestais.
Um de seus colegas “era mole, da preguiça monumental dos animais pujantes” — o narrador, ao que parece, não teve a oportunidade de ver um elefante desembestado. E a juventude, bem, esta, como sempre, “é a eterna esperança”. A vida no colégio tem a “carestia perpétua da prisão escolar”. E circundando o internato, o cenário do qual, sem nenhuma surpresa, poderia sair o Dr. Livingstone acompanhado por uma tribo de pigmeus: “Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama acidentado das montanhas da Tijuca, ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de colosso”. O oceano ao amanhecer é “um extenso cataclisma [sic] de lava” — certamente, uma inspiração paleozóica. E no Capítulo 9, ao narrar seu idílio com Egbert, temos o romantismo em sua mais desastrosa forma, estendendo-se por várias páginas — a cada linha, a impressão de que Alencar ressuscitará:
Ideávamos vagamente, mas inteiramente, na meditação sem palavras do sentimento, quadro de manchas sem contorno, ideávamos bem as cenas que líamos da singela narrativa [os dois garotos lêem Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre], almas que se encontram, dois coqueiros esbeltos crescendo juntos, erguendo aos poucos o feixe de grandes folhas franjadas, ao calor da felicidade e do trópico. Compreendíamos os pequeninos amantes de um ano, confundidos no berço, no sono, na inocência.
Escárnio e desprezo
Além destas questões, o narrador d’O Ateneu está longe do que Goethe propôs ao tratar da ironia, almejando para essa figura, no texto literário, o papel do “grão de sal que permite apreciar verdadeiramente o prato servido”. Em suas memórias, Sérgio mostra-se um sarcástico contumaz, um zombeteiro movido pelo desejo de aniquilar. Ninguém é digno para ele, sempre pronto a colecionar defeitos — físicos e morais — dos que passam sob sua vista. O internato assemelha-se a um comércio qualquer e seu diretor, com o peito repleto de condecorações durante certa festa, transforma-se numa peça publicitária, “personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua”. Aristarco também apresenta um “risinho nasal, cabritante” — e pode se transformar, obedecendo ao giro de sua poltrona, de “figura paternal do educador” em gerente hipócrita, cuja “esperteza” é “atenta e seca”. Venâncio, “tesinho, (…) professor do colégio, a quarenta mil réis por matéria”, não passa de um “mestiço de bronze, pequenino e tenaz”. Cada colega merece atributos degradantes: Gualtério, “motilidade brusca e caretas de símio”; Nascimento, “alongado por um modelo geral de pelicano”; Álvares, “cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna”; Almeidinha, “rosto de menina, faces de um rosa doentio”; Maurílio, “nervoso, insofrido”; Cruz, “olhar odioso e timorato”; Sanches, “cara extensa, olhos rasos, mortos, de um pardo transparente, lábios úmidos, porejando baba, meiguice viscosa de crápula antigo”. Franco, “raquítico, de olhos pasmados, face lívida, pálpebras pisadas”. Mata, “mirrado, corcundinha, de espinha quebrada, apelidado o mascate, melífluo no trato”. Ribas, “feio, magro, linfático” e a “boca sem lábios, de velha carpideira, desenhada em angústia”. Há outros, mas ele decreta: “O resto, uma cambadinha indistinta, adormentados nos últimos bancos, confundidos na sombra preguiçosa do fundo da sala”. Silvino, responsável por fiscalizar o recreio, “um grande magro, de avultado nariz e suíças dilaceradas, olhar miado e vivo como chispas, em órbitas de antro”. Nem a vegetação escapa: no pátio interno, as plantas apresentam “o verdor morto das palmas de igreja”.
Nearco, um novo aluno, grande atleta, segue “para o trapézio com o passo medido das emas”. E quando este revela seus dotes de orador, ao discursar no Grêmio, Sérgio mostra-se mais uma vez implacável — e seu tom cáustico só perde força graças aos contorcionismos do estilo:
Nearco introduziu o tipo ausente do Cícero penetração — incisivo, fanhoso e implicante, gesticulando com a mãozinha à altura da cara e o indicador em croque, marcando precisamente no ar, no soalho, na palma da outra mão o lugar de cada coisa que diz, mesmo que se não perceba, pasmando de não ser entendido, impacientando-se até ao desejo de vazar os olhos ao público com as pontas da sua clareza, ou derreando-se em frouxos de compaixão pela desgraça de nos não compreendermos, porcos e pérolas.
Sua compulsão por humilhar não tem limites. É uma febre. E seu exagero cria monstros inverossímeis, como esta mulher, responsável por cuidar do salão das crianças: “Uma velha, mirrada e má, que erigira o beliscão em preceito único disciplinar, olhos mínimos, chispando, boca sumida entre o nariz e o queixo, garganta escarlate, uma população de verrugas, cabeça penugenta de gipaeto sobre um corpo de bruxa”.
Quem mais ele pode achincalhar? Há escárnio e desprezo a mãos-cheias, para todos os gostos. A fanfarra não pode ser esquecida:
Em um estabelecimento de rumorosa fama como o Ateneu não se podia deixar de incluir no quadro das artes a música de pancadaria.
Passava despercebido o harmonium do Sampaio, religioso e bálbuce. Estimava-se como coisa somenos a rabequinha do Cunha, choramingas e expressiva, nas mãos do esguio violinista; manhoso o instrumento como uma casa de maternidade, pálido o músico, espichadinho e clorótico; dando ares de graça à linguagem das cravelhas por meio de sons que imitavam a quase afasia timorata e infantil do Cunha, descambando em síncopes, de vez em quando, estendendo guinchos histéricos de amor vadio, saltitando pizzicatos como as biqueiras de verniz do Cunha, amigo de valsar, ágil no baile como as fitas, as plumas e as evaporadas tules.
E já que estamos falando de música, conheçamos mais uma de suas vítimas, o professor de piano, Alberto Souto:
Bochechas largas de maestro em efígie, pianista portento que viera parar ao Ateneu, depois de percorrer a Europa à cata de triunfos, redondo, curto e musical como um cilindro de realejo; famoso pela gargalhada soez, bagaço espremido da vaidade, da cobiça, que lhe ficara dos sucessos do palco e das surras da aprendizagem; e pela estupidez seca nos estudos, como se a inteligência lhe houvesse escapado pelos dedos para os teclados em deserção definitiva.
Refúgio do pernóstico
Há mais, muito mais. O livro todo é uma ofensiva gargalhada, a um passo da histeria. Mas trata-se de um narrador sui generis. Hábil em depreciar, mestre da chacota, possui, entretanto, autocomplacência evangélica. Pródigo quando se trata de mostrar despeito e rancor, perdoa a si mesmo todas as falhas. Inseguro e medroso, desmaia e urina nas calças ao ser apresentado à classe, mas prefere não falar sobre os detalhes: “A perturbação levou-me a consciência das cousas”. Abandona os estudos e fica próximo de se tornar o pior aluno do colégio, mas chama isso de “desventuras”. Assediado sexualmente por Sanches, desculpa-se, certamente movido por incontrolável pureza: “Eu deixava tudo, fingindo-me insensível, com um plano de rompimento em idéia, embargado, todavia, pela falta de coragem. Não havia mal naquelas maneiras amigas; achava-as, simplesmente, despropositadas e importunas, máxime não correspondendo a mais insignificante manifestação da minha parte”. O mesmo colega, relata Sérgio, “gostava de vaguear comigo, à noite, antes da ceia, cruzando cem vezes o pátio de pouca luz, cingindo-me nervosamente, estreitamente até levantar-me do chão”. Mas o imaculado narrador conta que apenas “aturava” tal situação, num “resignado silêncio”…
Apesar dos rancores que guarda, e de sua “amarga descida ao fundo descrédito escolar”, afirma, com cinismo, que o Ateneu foi um “período sereno” da sua “vida moral”. Convidado por Franco para realizar uma terrível vingança contra todos os colegas, diz, leniente, ter “aceitado o convite com uma facilidade que ainda hoje não compreendo”.
Afirma-se possuidor de “delicadeza moral”, mas confessa, no entanto, servir-se da religião “como um colchão brando de malandrice consoladora”. E lembrando dos dias em que participava no coro da capela, esse verdadeiro pulha completa: “(…) Se cantassem os corações em vez dos lábios, nenhum hino evolaria mais largo, mais belo que o meu”.
Descobre patologias em tudo, mas não se considera doente por sentir o “agradável pavor” de ver um homem assassinado — e revela sua volúpia: “Eu queria o cadáver flagrante, despido dos artifícios de armação e religiosidade, que fazem do defunto simples pretexto para um cerimonial de aparato. O que me convinha era o galho por terra, ao capricho da queda, decepado da árvore da existência, tal qual”.
Insensível, descreve a si mesmo como um misto de orgulho e languidez. Desejado por vários colegas, jamais revela o que sente — e quando o faz, o leitor experiente é obrigado a desconfiar de sua sinceridade. Objeto dos favores de Bento Alves, que lhe envia flores, Sérgio se pergunta: “O que devia fazer uma namorada? Acariciei as flores, muito agradecido, e escondi-as antes que vissem”. Logo a seguir, por causa dos seus amores tão platônicos, mete-se numa guerrinha de fuxiqueiros, da qual, contudo, quem leva a pior é Bento, preso, no próprio colégio, pelo diretor. E Sérgio, tão feminino quanto dissimulado, afirma do alto da sua indiferença: “Por minha parte, entreguei-me de coração ao desespero das damas romanceiras, montando guarda de suspiros à janela gradeada de um cárcere onde se deixava deter o gentil cavalheiro, para o fim único de propor assunto às trovas e aos trovadores medievos”.
A retórica, na verdade, é o refúgio desse pernóstico, o instrumento por meio do qual ele camufla seus reais interesses, inclusive os sexuais. Vejam como recorda seus amores:
A convivência do Sanches fora apenas como o aperfeiçoamento aglutinante de um sinapismo, intolerável e colado, espécie de escravidão preguiçosa da inexperiência e do temor; a amizade de Bento Alves fora verdadeira, mas do meu lado havia apenas gratidão, preito à força, comodidade da sujeição voluntária, vaidade feminina de dominar pela fraqueza, todos os elementos de uma forma passiva de afeto, em que o dispêndio de energia é nulo, e o sentimento vive de descanso e de sono.
Mas encherá páginas de pieguice por Egbert, perdendo-se numa cantilena amorosa que encantaria M. Delly e chega a provocar engulhos:
Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava mais cedo para vê-lo acordar. Tudo que nos pertencia, era comum. Eu por mim positivamente adorava-o e o julgava perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o coração, até a cor da pele e à correção das formas. Nadava como as toninhas. A água azul fugia-lhe diante em marulho, ou subia-lhe aos ombros banhando de um lustre de marfim polido a brancura do corpo.
Esse homossexualismo, descrito com os piores clichês, é justificado de maneira ridícula, por meio de uma tese tão tresloucada quanto reveladora do caráter mórbido do narrador: “(…) Certa efeminação pode existir como um período de constituição moral”.
Último brinde
O impulso destruidor de Sérgio será saciado com o incêndio d’O Ateneu. Enquanto as chamas consomem o internato, o narrador comemora: “Tratadas a fogo, as vidraças estalavam. Distinguia-se na tempestade de rumores o barulho cristalino dos vidros na pedra das sacadas, como brindes perdidos da saturnal da devastação”. Darwinista furioso e rasteiro, o Dr. Cláudio já sentenciara: só por meio do “atrito das circunstâncias” o mundo pode evoluir, o que não significa que deva se tornar virtuoso — “A existência agita-se como a peneira do garimpeiro”. Deletério, enfermo de retórica, pessimismo e ódio, não causaria surpresa se, ao final da história, o narrador metesse um tiro no próprio peito.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Machado de Assis e Dom Casmurro.